por Ivan Schmidt
O correspondente do diário madrilenho El País em Roma, Daniel Verdú, enviou ao jornal por esses dias uma ilustrativa reportagem sobre a pretensa “guerra” instalada no Vaticano entre prelados conservadores e reformistas.
O fato, que não é novo em se tratando das entranhas das altas esferas diretivas da Igreja, corrobora com a opinião de muitos observadores de que a política, e não raro, a politicalha, também se faz presente por detrás das pesadas muralhas da chamada Santa Sé.
Lembrando a frase de Bento XVI em sua despedida, “as águas estão um pouco agitadas no Vaticano”, Verdú escreveu que “além da já conhecida resistência de alguns setores da Cúria aos ares de mudança trazidos pelo papa Francisco, há dois acontecimentos recentes: a guerra em plena luz do dia com o grão-mestre da Ordem de Malta, que acabou destituído pelo próprio pontífice, e o surgimento de diversos cartazes contra as medidas de abertura de Francisco, colados nos muros de algumas ruas de Roma”.
Diz ele também que a confirmação desse imbróglio chegou com um gesto pouco habitual do grupo de cardeais mais próximos do papa, que lhe manifestaram apoio público em resposta “aos últimos acontecimentos”.
O comunicado chamou a atenção dos jornalistas que cobrem as atividades do Vaticano, tanto pela objetividade das declarações quanto pela rara disposição dos religiosos em dar publicidade a assuntos internos.
Uma das decisões anunciadas pelo papa no início do pontificado foi a criação de um grupo de cardeais encarregados de estudar o projeto de reformar a Igreja – o C9. O grupo já realizou 18 encontros desde 2013, mas sua característica sempre foi a discrição, ou seja, quase nenhuma declaração pública sobre o andamento dos estudos, a não ser a criação de uma importante comissão para a defesa dos menores.
No começo da reunião da última segunda-feira (13), no entanto, o grupo de cardeais distribuiu pequena nota afirmando que “em relação aos recentes acontecimentos, o Conselho de Cardeais expressa o pleno apoio ao papa, assegurando, ao mesmo tempo, a adesão e o apoio pleno à sua pessoa e ao seu magistério”.
Verdú levanta a questão dos acontecimentos a que se referem os cardeais do C9, informando que monsenhor Reinhard Marx, integrante do grupo, no dia seguinte respondeu às perguntas da imprensa: “Vocês sabem quais os acontecimentos… Era hora de repetir que o apoiamos. Não queremos dramatizar esse tema. Temos discussões na Igreja, mas a lealdade ao papa é inerente à fé católica. O que queríamos dizer está no comunicado”.
Muito próximo a Francisco, o alemão Marx, foi um dos defensores públicos da Amoris Laetitia, “a exortação católica com a qual o papa pediu que se aja com discernimento, estudando cada caso e não apenas aplicando leis na hora de dar os sacramentos, inclusive a pessoas divorciadas, segundo se deduzia”.
Na visão de Marx “é mesquinho considerar se o agir de uma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral”. E repetiu aos sacerdotes uma declaração de Francisco, naquela ocasião: “O confessionário não deve ser uma sala de torturas, mas sim o lugar da misericórdia do Senhor”.
O lado mais conservador da Igreja em nossos dias é personificado, acrescenta Daniel Verdú, pelo cardeal norte-americano Raymond Leo Burke, que escreveu pessoalmente ao papa expressando dúvidas sobre a validade da exortação, exigindo esclarecimentos. O rigor das palavras de Burke foi tamanho que ele chegou a afirmar que se o pontífice não se pronunciasse, ele mesmo corrigiria o que julgava engano de Francisco.
Diante dessa veemência, Verdú afirma que “desde então, cada vez que as águas ficam turvas, alguns dirigem o olhar para Burke”, que é também patrono da Ordem Soberana e Militar de Malta, organização fundada em 1048 e hoje formada por laicos de famílias nobres dedicados a trabalhos humanitários.
O grão-mestre da Ordem – Matthew Festing – envolveu-se numa guerra contra o papa Francisco que terminou com sua renúncia, imposta pelo chefe da Igreja.
O jornalista espanhol assinala que esse é apenas um vislumbre da luta da resistência dos tradicionalistas contra a tendência de abertura mostrada pelo papa. O conflito ganhou força com a decisão do cardeal Burke – ou que pelo menos contou com sua aquiescência – sobre a destituição do grão chanceler Albrecht Von Boeselager, acusado de permitir a distribuição de preservativos na África e na Ásia por uma ONG que colabora com a Ordem de Malta.
Francisco mandou instituir uma comissão para apurar os fatos, mas a ordem milenar representada pelo grão-mestre reivindicou sua soberania e se negou a esclarecer o assunto, daí o sumário afastamento do líder.
Sabidamente dividida entre o pensamento conservador e a liberalidade dos novos tempos, a Igreja se debate com o dilema hamletiano do ser ou não ser.