por Rogerio Galindo
Misantropia em verso e prosa*
Em abril de 1888, Ambrose Bierce publicou um poeminha que mais tarde sairia em livro no seu Dicionário do Diabo, ilustrando o verbete “Perda”. Era um epitáfio para o magnata das ferrovias Collis P. Huntington. Ao contrário do que ocorre nos epitáfios em geral, não se tratava de uma homenagem.
Aqui jaz sir Huntington, voltou ao pó.
A perda que teve foi nossa vitória,
Pois quando vivia, em toda a sua glória,
O que ele ganhava perdíamos nós
Um detalhe a ser levado em consideração: Huntington estava vivíssimo. Só morreria em 1900, doze anos depois, não antes de outro enfrentamento com Bierce, mais direto e mais célebre. Huntington havia emprestado do governo americano 130 milhões de dólares para suas ferrovias e estava fazendo tramitar no Congresso, por meio de um deputado amigo, um projeto que anistiava sua dívida – coisa de 10 bilhões de dólares em dinheiro de hoje.
Bierce foi designado pelo jornal em que trabalhava para cobrir o assunto. O projeto só passaria se corresse em sigilo. Ao descobrir que o jornalista estragaria tudo, Huntington teria perguntado a ele qual era o seu preço. A resposta que ficou registrada nos jornais foi a seguinte: “Meu preço são 130 milhões de dólares. Se quando você estiver pronto para pagar eu estiver fora da cidade, pode entregar a meu amigo, o secretário do Tesouro dos Estados Unidos”.
Quem tinha mandado Bierce cobrir a história foi outro multimilionário, este muito mais famoso: William Randolph Hearst, o modelo para o Cidadão Kane de Orson Welles, e que também é citado em um poema doDicionário, ilustrando o verbete “Diário”.
Novamente, o personagem aparece como morto quando ainda estava vivo, e de novo para ser criticado – dessa vez, na verdade, ridicularizado. O “anjo cartorário” ri de todas as “tolices de segunda mão” que Hearst escreveu em seu diário e decide que ele não está pronto para o céu nem para o inferno. Chuta-o de volta para a Terra.
Hearst, que herdou o Examiner muito cedo, foi patrão de Bierce durante mais de uma década. O jornalista rompeu com ele devido ao tratamento dado a seus textos e colunas no jornal. Entre os textos que ele publicou via Hearst estava boa parte do que viria a ser este Dicionário.
Os dois poemas servem para mostrar a verdadeira irreverência de Bierce. Palavra usada em excesso para qualquer tipo de humor, no caso de Bierce ela se encaixa à perfeição: ele realmente parecia não refrear seu instinto de crítica diante de nada nem de ninguém. Pelo contrário: quanto mais poderoso o alvo – e quanto maior o tabu que o envolvesse –, mais ácido seria o comentário de Bierce.
Por acaso, mas também por sorte, a primeira definição no Dicionário, na ordem alfabética original, em inglês, é a de “Abasement”, aqui traduzida por “Rebaixamento”: “Atitude mental decente e costumeira na presença de riqueza e poder. Particularmente adequada em um empregado ao falar com o empregador”. Ao iniciar assim o livro, fica claro que Bierce não está disposto a se rebaixar nem à riqueza nem ao poder.
O autor realmente não presta reverência. Critica todas as culturas – mas principalmente a sua, dos Estados Unidos; questiona todas as religiões, mas com maior ênfase no cristianismo, que está à sua volta; ironiza todas as profissões, mas com acidez especial às próprias, de jornalista, escritor e até mesmo a de dicionarista.
Nos poemas, nesta edição traduzidos pela primeira vez integralmente para o português, vê-se com clareza que a crítica demolidora não se voltava só a instituições, culturas e categorias: e sim, também, a indivíduos. Como Dante séculos antes, Bierce coloca seus contemporâneos – os mais intocáveis dentre eles – em uma espécie de inferno, em círculos destinados aos hipócritas, aos covardes e aos vaidosos. Muito especialmente aos vaidosos.
O Dicionário é, no fundo, um libelo contra a soberba humana, contra as nossas pretensões. A religião é criticada antes de mais nada por sua pretensão a tudo saber. Os políticos, por sua pretensão à infalibilidade. Os americanos, por sua pretensão a serem superiores aos demais. A soberba, diz a teologia, é a mãe de todos os pecados. Bierce, em um livro que se intitula “diabólico”, concorda.
O Diabo do título – muitas vezes em sua carreira Bierce fazia uso de um personagem-colaborador intitulado John Satan – substituiu a palavra “cínico” das primeiras edições do livro. E aparece aqui e ali justamente punindo personagens da época de Bierce, como o governador de Illinois que comutou a pena de um grupo preso por terrorismo, e que aparece (também ainda vivo) torrando no fogo do inferno, no verbete “Suspensão”.
A crítica à instituição religiosa, porém, não significa que Bierce fosse realmente diabólico. Primeiro porque curiosamente uma das raras figuras que ele elogiava era… Jesus Cristo. (Conte quantas pessoas aparecem no Dicionário sem ser como maus exemplos. Há alguns grandes escritores, como Shakespeare e Milton. Mas não espere muito mais…)
Em uma carta a um amigo, Bierce diz que, para ele, o grande teste moral para decidir se uma ação é boa ou não (o seu imperativo categórico, por assim dizer) era pensar: o que Cristo faria? Deixando claro que ele respeitava o Cristo histórico: não o dos padres nem o dos comentadores, dirá em seguida.
Mas o Cristo de Bierce parece ser o que expulsa os vendilhões do templo. E na maior parte do tempo, no Dicionário, é dos vendilhões que ele fala. E de nós todos – pois somos todos vendilhões em alguma medida, em algum momento. Um crítico, Clifton Fadiman, já disse que o que perpetuaria a obra de Bierce, muito mais do que seu talento, era a “pureza de sua misantropia”.
Mas a misantropia dele dizia respeito muito mais à espécie. Os personagens selecionados são expostos por serem o epítome de um pecado que cabe a todos – ou, como ninguém é de ferro, por terem pisado nos calos de Bierce. No entanto, na vida real, o escritor (embora pudesse ser vil, conforme relatam seus biógrafos) era também capaz de gestos raros para proteger alguém.
Ao contrário dos que dizem amar a humanidade (o mais fácil) e rejeitam cada um dos seus espécimes, Bierce faz o caminho oposto, e muito menos trilhado – desespera-se com a humanidade, mas na Guerra Civil (1861-65) coloca-se em risco para salvar colegas. Não à toa, acabou com uma bala na cabeça que o retirou temporariamente de combate.
Em todos os gestos “misantropos” de Bierce há também algo de crença no humano. No confronto com o magnata da ferrovia, sua afronta só faz sentido porque ele queria defender uma boa causa – o erário. No seu texto, vale o mesmo. Se enfrenta a soberba, é porque quer defender alguém contra ela. Quer defender a própria humanidade? Nós?
*
O Dicionário do Diabo é mais do que centenário. As primeiras definições começam a aparecer em 1881. Durante 25 anos, Bierce foi acumulando definições. Aparentemente, escrevia os textos e deixava-os na gaveta, usando para completar o espaço de suas colunas quando precisava. Mas já em 1869, comentando um texto de Noah Webster, ele falava na ideia de um “dicionário cômico” a ser produzido por um autor americano.
Em 1906, esse dicionário virou livro, com o título Vocabulário do cínico. Cinco anos mais tarde, com mais definições, apareceria já como Dicionário do Diabo, nesta versão clássica que você agora tem em mãos. Desde então, devido ao uso de pseudônimos, de verbetes que não foram incluídos apesar de publicados em jornal e de dificuldades de estabelecer quais textos realmente são de Bierce, várias edições aumentaram o volume de verbetes.
Isso significa que o projeto ocupou metade da vida (conhecida) de Bierce. Nascido em 1842, ele tinha menos de 30 anos por ocasião das primeiras definições. Na edição do livro em seu formato atual, ele estava à beira dos 70. E até onde se pode saber, viveria apenas mais três anos – na verdade ninguém tem como ter certeza, já que ele aparentemente partiu para o México para acompanhar Pancho Villa na Revolução Mexicana e desapareceu; ninguém sabe onde e como morreu.
David E. Schultz e S.T. Joshi, autores de uma edição clássica do Dicionário publicada pela Universidade da Geórgia, afirmam que esta pode não ser a obra-prima de Bierce – nos Estados Unidos, ele é muito mais admirado por alguns contos, como “An Occurrence at Owl Creek Bridge”. Mas este, dizem eles, é o livro que melhor transmite o espírito do autor.
“Na verdade”, afirmam, “a vida e a carreira de Bierce podem ser resumidas em uma única frase”. E essa frase é do Dicionário e está na definição do verbete “Cínico”: “Um canalha cuja visão defeituosa vê as coisas como elas são, não como devem ser”. Poderia também ter dito: e não como os outros querem que vejamos.
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As edições do Dicionário traduzidas para o português omitiram os poemas (assim como algumas edições em língua inglesa e em traduções para outros idiomas). Os poemas, alegou-se em algum momento, não são a parte mais interessante da obra.
Pode ser. Bierce, de fato, era um prosador antes de tudo – a poesia ele praticava sempre, mas não com a mesma naturalidade. Os versos do Dicionário, por exemplo, são formalmente bem-acabados, mas talvez alguém não se empolgue com eles por não serem escritos na intenção de revelar um estado de espírito, de um sentimento: não são poemas líricos, e sim poemas descritivos, usados para contar histórias que ilustrem aquilo que a descrição do verbete não faria melhor.
Amputar os poemas, assim, é retirar do leitor a chance de conhecer o projeto inteiro de Bierce, como ele se propôs a escrevê-lo. Sem eles, por exemplo, não se fica sabendo em plena escala das diatribes do autor contra seus contemporâneos. E há poemas realmente bons: alguns hilários, outros formalmente perfeitos, todos escritos com competência e domínio da técnica.
Mas a técnica é o que menos importa. O que conta é que os poemas são mais uma arma na mão do autor para combater seu bom combate. O combate contra a arrogância humana que marca o Dicionário da primeira à última palavra.
Para isso, Bierce se serve de moldes de poetas clássicos da língua inglesa, de Pope a Longfellow, passando por Byron, e assina os poemas com vários nomes falsos. Alguns viram verdadeiros personagens do livro, como o padre Gassalasca Jape ou Judibras. Ao leitor brasileiro, todos são novos.
Às vezes a tradução, principalmente em função do gosto de Bierce por jogos de palavras e trocadilhos, pode ter feito perder algo do original. Mas a força da palavra dele há de ter sobrevivido para mostrar como lidava com o mundo ao seu redor o mais puro dos misantropos – em prosa e verso.
*Apresentação do livro “O Dicionário do Diabo” (Editora Carambaia – www.carambaia.com.br) pelo tradutor, jornalista e mestre em filosofia Rogerio Galindo
E agora, como conseguirei ficar sem ler o livro? Valeu.!