8:28Mão de Deus

por Fernando Muniz 

        – E então, como foi que o guri foi parar naquela vala, todo furado e queimado? – o delegado começa a sua rotina, enquanto procura o maço de cigarros.

– Eu… eu não sei do que o senhor está falando, não sei mesmo! Queimaduras? – essa informação parece incomodá-la.

– Minha senhora, não seja cínica. Descobrimos a faca no terreno baldio, pegado aos fundos da sua casa, junto ao quarto do guri. Faca igual às que têm na sua cozinha, por sinal. Então, foi você ou o seu marido? Ou os dois?

– Mas eu não sei como ela foi parar lá!

– Ah, é? Eu imaginei que você ia dizer que nunca jogou faca alguma no terreno baldio…

– É que… É que foi o senhor que disse que descobriu uma faca, eu não disse nada.

– E não negou que soubesse dela. Bom, vamos ficar nesse jogo de gato e rato?

– Onde está o meu advogado?

– Que advogado o quê, criatura?! Tá pensando que isso é filme americano?

– Não senhor, mas eu tenho os meus direitos!

Ele começa a se irritar com aquela dona e sua cara de culpada, a posar de inocente, como tantos ao longo dos anos.

– Enquanto não me explicar direitinho o que aquela faca fazia no terreno baldio o único direito que você vai ter é o de ir ao banheiro. E olhe lá! Então, quem tramou a morte? O seu marido ou você? Quem teve a ideia?

A mulher permanece em silêncio. “Matreira, essa vai me dar trabalho”. Resolve dar outro rumo à conversa.

– Olha só, já colhi outros depoimentos e me disseram que você não suportava o guri porque ele era veado. Confere?

– O quê?! É… eh, não, não senhor, isso é mentira deslavada!

– Ah, minha querida, não vem com onda para cima de mim não, vai me dizer que você não tinha medo de que ele atacasse o seu marido? – faz uma pausa retórica, que aprendera ao ver advogados no tribunal do júri – ou tinha medo que ele pegasse o seu filhinho de quatro anos, hein?

O rosto da mulher se transfigura. Parece que vai ter uma convulsão. Raiva, ódio, desespero, não dá para saber ao certo. Começa a chorar, baixinho. O delegado está satisfeito; atingiu o ponto fraco dela.

Fora da sala, uma algazarra. Batem à porta. Um investigador coloca a cabeça para dentro. Não tem coragem de entrar.

– Doutor, tem um advogado aqui que diz representar a depoente.

– Manda esse infeliz entrar – “não tem problema. Que venha o melhor do país. Não vai ter chance alguma”. Quebrou a espinha dela. Agora é deixar o tempo correr.

– Bom dia doutor, já começou o depoimento sem a minha presença? Mau começo, hein?

– Mau começo? O senhor pensa que vou esperar Vossa Excelência descer lá do céu para fazer o meu trabalho? Aqui quem precisa correr atrás é o senhor, não eu! Mas não se preocupe, porque sua cliente não disse nada de comprometedor. Ainda. Aliás, ele é seu advogado mesmo?

– É, sim! – pensa que é; um parente tinha mandado um bilhete a ela, na carceragem, dizendo que contratariam um.

– Posso ter uma palavrinha com a minha cliente, doutor?

– Só um momento. Para recapitular: a senhora disse não ter coisa alguma com a morte do rapaz, porém achamos uma faca com o sangue dele no terreno baldio, ao lado da casa. Já fizemos o DNA, inclusive – advogado e acusada se entreolham. Pois é, o tempo tá quente e, sem chuva, o sangue não desgrudou da faca, sabem? E, segundo o depoimento do namoradinho dele, vocês não suportavam o fato de ele ser bicha. É isso? Se não for, vou precisar fazer a acareação dela tanto com o namoradinho como com o pastor lá da sua igreja. Até cura gay forçaram o rapaz a fazer, confere? E estou com mais dois depoimentos logo depois do seu, que irão confirmar esses detalhes e mais outros, muitos outros. Se a senhora não colaborar comigo vai passar o resto da vida em cana.

O advogado e a cliente vão conversar na sala ao lado. Para ele, isso não vai fazer diferença alguma. “Podem bolar a estratégia que quiserem. Sem problemas. Vou esmagar essa filha-da-puta. Ainda mais com esse imbecil a tiracolo”. Aproveita para fumar um cigarro. Voltam à sala de interrogatório, junto com o escrivão, que passa a acompanhar o depoimento. O advogado faz uma cara feia ao ver o cigarro no cinzeiro.

– Bom, agora que estamos todos na mesma página, vamos continuar com a nossa conversa, muito instrutiva. E então, o que a senhora tem a dizer sobre os fatos?

– Com o devido respeito, doutor, tenho uma declaração a fazer – faz um sinal com a mão, para ela ficar quieta – minha cliente reserva-se no direito constitucional de permanecer calada quanto aos alegados “fatos” objeto da presente investigação – faz sinal de aspas com as mãos. E pode reduzir isso a termo, senhor escrivão.

– Peraí só um momentinho, pois quem diz o que vai ser escrito ou não aqui sou eu – ele faz outra pausa, daquelas de tribunal do júri. Olha para cima, coça o queixo com a barba de dois dias, abre a gaveta e puxa de lá uma pulseira dourada, envolta em um pacote plástico.

– Sabe o que é isso, minha senhora? – olha fixo para ela, cujo rosto volta a ficar transtornado.

– Eu?!

– É, sim, a senhora – o delegado solta uma risada, sarcástica. Sabe de onde veio isso? Do braço do rapaz que não virou carvão. Aliás, serviço medonho esse o de vocês, hein? Sequer torrar o corpo inteiro conseguiram! – e mostra uma foto do cadáver, com o lado esquerdo enegrecido, o lado direito alvo, quase intacto. O escrivão, apesar de experiente, sente um engulho.

A tática da fotografia funciona. Ela olha para o advogado, que ensaia uma reação de que a sua cliente não iria mais falar nada; para o escrivão, cujo rosto começa a ficar esverdeado. Mas evita o delegado. Começa a chorar, convulsiva.

– Eu não vou levar essa culpa para o inferno não, ah, não vou! Nem eu nem o meu marido! O senhor pode achar o que quiser de mim! Foi a mão de deus que nos guiou, seguimos o caminho dos puros! O pastor falou que essa coisa dele não era normal, era possessão! Podem me julgar pela lei dos homens, mas pela lei de deus estamos corretos! Estou absolvida! Estou limpa! Ai, meu deus do céu, dai-me forças nesta hora de provação! Glória a deus nas alturas, glória a deus! – e olha para a foto, novamente. Solta um grito grosso, quase um arroto; põe as mãos no rosto e apoia a testa na escrivaninha. Balança na cadeira, quase cai. Seu choro passa a ser entrecortado por uns gritos agudos, como se estivessem a lhe arrancar braços e pernas. Fora da sala, cessa o barulho. A delegacia cai em silêncio.

O delegado vira-se para o escrivão, que, atônito, não consegue despregar os olhos dela.

– Acorda criatura! Parece que viu assombração?! Quem vê não pensa que você trabalha na Homicídios! Vamos lá, escreve aí: “QUE a depoente, mãe da vítima, em conluio com o padrasto…”.

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