por Fernando Muniz
O sol aquece as colinas, árvores e animais, envoltos pela tranquilidade da floresta, intocada, em um canto quase inacessível do mundo. Riachos fluem entre pedras, aparam cantos e arestas, e, assim que se encontram, viram rio um tanto caudaloso, a serpentear pelo vale.
Uma aldeota deita-se à beira do rio. Os moradores, tal qual extensa família, levam vida simples, uma vez índios, adiante mestiços e, hoje em dia, caiçaras.
Aquele lugar é, para eles, a origem do mundo, a explicação de tudo e de onde os seus antepassados surgiram, talvez descidos do céu ou saídos das cavernas, carregando consigo as sementes, o fogo e os bichos.
Seja no inverno seja no verão, com água em demasia ou durante a seca, em meio às ventanias ou fustigados por incêndios, fartos de alimentos ou esfomeados, tudo é obra dos espíritos ancestrais que habitam aquelas encostas.
Essa crença, que os velhos começam a esquecer, porém os mais novos recitam de cor, as ideias do homem branco não conseguem apagar. Muito menos substituir. Persignações, sacrilégios e homilias servem como disfarces solenes, vestidos quando em vez, ao surgir um pároco que resolva subir os morros, encarar a floresta e fiscalizar se o rebanho não se desgarrou. No resto do tempo a comunidade respira os seus próprios ares, labuta nas roças junto a cabras e cachorros, compartilha moradias modestas entre o rio e a mata, quase imperceptível de tão integrada ao cenário.
Os dias correm iguais em sua languidez, em um ritmo de nascimento, vida e morte que segue sereno pelo vale, feito o rio.
Salvo naquela manhã.
Lá no topo do morro mais alto, aquele que toca o céu e, segundo alguns, onde tudo começou, as nuvens ficam carregadas. No início, brancas, tornam-se cinzas, daí negras. Feito golpe de vento, que, aliás, começa a soprar arisco, agitando árvores e bichos.
Tempestade imprevista, impetuosa, troveja morro abaixo. Cai mais água naqueles poucos instantes do que durante o ano todo.
Os velhos se assustam, afinal nunca viram algo assim. Os mais jovens acham graça do mau humor dos espíritos e correm para homenageá-los à beira do rio, pois ali podem dançar à vontade, aproveitando a chuva. Mas param, ou melhor, estancam, petrificados.
Uma meninota acorda com o barulho, agarra a sua boneca de taipa, olha pela janela e balbucia:
– Mamãe!
Em um instante aquela vida, pacata e bela, devotada aos espíritos e à natureza, extingue-se. Engolida por uma avalanche. Num suspiro.