7:26Domingo à Tarde

de Fernando Muniz

– Café?Alguém? Pai?

– Quero! Bem forte.

– Yara?

– Não, obrigada.

– Mãe?

– Obrigada!

– …

– Quero sim!

– Lola, vai experimentar dessa vez? O café é bom!

– O cheiro é bom, mas não. Obrigada.

– Pai, conta a estória do sequestro da Cecilia. Conta!

– Sequestro da Cecília?

– Bom, depois de quase vinte anos de casado com a tua filha acho que dá para contar os podres de família, né pai?

– Que podre o que, rapaz! O que fizemos foi o certo, sim senhor.

– Mas conta, pai, como é que o tio Ismar conheceu a Anette?

– Deixa só eu falar uma coisa; isso é prova, né, o Ministério Público, se pegar isso aí, vocês estão gravado ainda por cima…

– O quê?! Isso aconteceu faz cinquenta anos, Lola, a polícia não vem mais atrás da gente.

– A minha voz está aparecendo nessa gravação. Não tenho nada a ver com isso, casei com você depois que…

– Fique tranquila. Assumo toda a culpa, pela família inteira. E a estória é muito boa. Bom, pai, como é que foi? Conta!

– Ele conheceu a Cecilia…

– Cecilia não, Anette.

– Isso, Mara, isso. Ele conheceu a Anette numa festa. Começaram a namorar, e tal, apesar de eu avisar a ele que ela não era direita.

– Nessa época vocês já moravam na Tijuca?

– Ih, já entendi. O Ismar casou com ela, depois descobriu que ela traía ele e deu uma confusão danada. É isso?

– Yara, sempre sintetizando a conversa… Bom, pai, vamos lá. Mas porque ela não era uma boa bisca?

– Ela não era muito… sincera, o negócio dela era namorar um aqui, outro ali…

– Era uma galinha…

– Relativamente penosa! Passa o adoçante, por favor?

– Ela era bonita?

– Era, Lola. Filha de uma pernambucana, dona Anfrísia, nome de pau-de-arara, com um polonês, Schreider. Antes deles se casarem o Sr. Schreider pegou as mãos do Ismar, olhou para as unhas e disse: “é, você não é descendente de preto. Na tua terra tem muito preto”. O homem, enorme, era oficial da Marinha Mercante. Então ele estava aqui no Brasil, conhecia bem o Nordeste e, em Pernambuco, conheceu a Dona Anfrísia. Ismar casou e Anette ficou grávida logo em seguida. Nasceu a Cecilia. Ismar foi trabalhar na embaixada americana, no Rio, como escriturário, na parte de vistos, essas coisas, porque falava inglês fluente.

– Mas como é que você descobriu que a Anette era galinha? Depois de casada?

– Eu era solteiro, trabalhava no Correio da Manhã, tinha muitas amizades. Muitos amigos. De vez em quando ia a Copacabana, tomar uns goles e, certa feita, em uma roda de conversa, ao verem que eu acenava para a Anette, um deles me perguntou: “você conhece aquela dona ali?”, e eu disse que sim, que era minha cunhada. “Mas ela anda com um amigo meu!”. Aí eu comecei a investigar. E constatei que era verdade.

– Como que você constatou? Foi fazer tocaia?

– Lola!

– Ora, se é para ser completa a história, temos que saber tudo!

– Bom, eu chamei o Ismar e “olha, a Anette está pulando a cerca”. “Como?”; Eu disse “pulando a cerca, rapaz, ela é casada contigo, mas vive atrás de outros”. Eles moravam em um apartamento no Leblon.

– Você lembra da rua?

– Ataulfo de Paiva.

– Bom, perguntar o nome da rua é mais importante que saber como aconteceu, se ele pegou ela no ato, essas coisas?!

– É para sabermos o cenário, Lola! Faz parte da estória, da trama. Pai, continua.

– Ataulfo de Paiva, quase saindo para a Niemeyer, um apartamento muito bom. Aí, eu disse para o Ismar: “olha, vou te dizer uma coisa. Você, para constatar isso aí, você procura dar uma incerta em casa. Quando ela disser que vai para o dentista, por exemplo, você aparece”. Resultado, ele fez isso e constatou que ela, realmente, estava andando com outro cara.

– Daí?

– Aí ele ficou louco. Chegou em casa, comprou um litro daquele vermute, Cinzano, e tomou quase que inteiro. Ficou bêbado! Completamente bêbado, quase em coma alcoólica. Aí eu cheguei e ele queria se suicidar. Sério! Lá estava o Ismar, jogado em um sofá, murmurando bobagens. “Eu vou acabar com esse negócio”… ficou de pé e correu para a janela, mas segurei as pernas dele e não deixei. “Que é isso, rapaz, você é louco? Tanta mulher bonita aí, porra, tem de dúzia aí, tu pega de penca, em Copacabana, com um apartamento desses!”. Era um apartamento muito bom, o deles.

– E o Ismar, fez o que então, além de beber?

– Ele tinha um amigo, o Hercilio, filho único de um figurão, presidente de uma estatal. O Hercilio disse para o Ismar, “quer saber de uma coisa, largue mão dessa mulher, vamos embora para os Estados Unidos, lá também tem mulher de monte, você esquece isso rapidinho”. Mas peraí. Não. Aí eles começaram a brigar.

– Ismar e Anette?

– Isso. Enquanto ele se preparava para ir embora. Ele saiu de casa e voltou a morar com papai, na Tijuca. Sempre sobra para os pais numa hora dessas… Deixou a Annette no apartamento, com a Cecília. E foi Ismar que entrou com o desquite, na Justiça. Começaram a brigar feito cachorros. Aí, um belo dia, Anette resolveu fazer uma loucura. Eles tinham uma empregada, espanhola, que cozinhava muito bem por sinal. Pois a Anette combinou com essa mulher, que pegou a menina…

– Qual era o nome da espanhola? Pilar? Mercedes?

– Ah, Lola, não me lembro mais, faz cinquenta anos que tudo aconteceu.

– Mas por que a espanhola pegou a Cecilia?

– Por conta do desquite, filho, as brigas, as ameaças do Ismar que pegaria a Cecília e fugiria para os Estados Unidos, então a Anette pediu à espanhola para levar a Cecilia, para roubar a Cecilia e levar para a casa dela, que ficava naquela favela lá nos fundos de Botafogo.

– A Anette pediu para a espanhola roubar a Cecilia?

– Sim, Yara.

– Que absurdo!

– A estória é boa, deixem o pai contar!

– Vocês estão ouvindo isso hoje. Imaginem quando os meus sogros contaram isso para mim, com o maior orgulho do mundo…

– Mãe, deixa o pai continuar. Por favor?

– Ela pediu para a espanhola esconder a Cecilia do Ismar.

– Ele deve ter ameaçado tomar a menina dela, bastante…

– Com certeza. Adultério. Naquela época era coisa séria.

– Yara tem razão. Já tinha uma questão na Justiça, a ação de desquite, do Ismar contra a Anette e ele pedia a guarda da menina.

– Quantos anos tinha a Cecilia?

– Ela tinha oito meses, mais ou menos, filho, um bebê. Aí, quando nós descobrimos o que aconteceu, o sumiço da Cecília, Ismar e eu chamamos o Armando, nosso irmão mais novo, para que ele falasse com um chapa dele, que trabalhava no DOPS. “A gente pega essa espanhola e dá uma torcida no pescoço dela, que ela diz, já, já, onde está a menina”.

– Meu deus, que ano foi isso?

– 1965, Yara. Regime militar! Pai, continua.

– Mas você já conhece a estória?

– Conheço um pouco, só uns pedaços, de ouvir atrás da porta. Anda com o bonde, pai.

– É, exatamente. Armando falou com o amigo dele, investigador do DOPS, que foi atrás do porteiro do prédio do Ismar, que apontou para o rapaz da banca de revistas, e foi, e foi até descobrir o endereço da espanhola. Mas quando fomos lá na delegacia, conversar com o homem, ele veio com uma conversa esquisita. “Mas eu não posso pegar a criança. Vou chegar lá na casa dela, pego a criança e entrego para algum parente”. E eu me habilitei a ir junto. Ele apanhou um trabuco de cima da mesa, colocou na cinta e fomos para o morro.

– Quanto tempo fazia que a espanhola tinha levado a criança?

– Ah, Lola, fazia mais ou menos uma semana, por aí. Chegamos lá e vocês sabem como esse pessoal opera. O cara deu um coice na porta do barraco, entrou, Anette estava sentada na sala, na verdade um chiqueiro, com a menina toda picada de mosquito, suja, de fralda. A espanhola ficou cheia de direitos, “O señor não pode entrar aqui desse jeito”, e ele responde “o quê? Como não posso? Eu vou levar você em cana, sua vagabunda!”, e ela “pelo amor de diós!”, pois ele nem deixou ela terminar de falar e “Você sequestrou essa menina! Vai em cana”. Achei que ele ia cobrir ela de pancada, e a espanhola “no no, mas la madre dela me entregou”… “Mentira! O que você vai fazer com essa menina, vai vender ela? Dá ela aqui!” e me entregou a Cecilia, que berrava, toda suja e picada de bicho.

– Peraí, a Anette estava na sala?

– Como? Desculpa, Lola, não estava não. Me confundi. Faz tempo tudo isso.

– E o Ismar, onde ele estava?

– Ismar estava choramingando por aí, bebendo com o Hercílio, que não parava de encher o saco dele com essa estória de Estados Unidos. Um trapo. Bom, peguei a Cecilia, levei para a minha casa, sem autorização nem nada, e, por sorte, gente, por sorte, o juiz responsável pela questão do desquite do Ismar era nosso vizinho. Morava no prédio da frente. Inclusive, a senhora dele era muito amiga da minha mãe. Então, mamãe contou a estória para a senhora, o que tinha acontecido com o Ismar, em todos os detalhes, coisa e tal. Dias depois, ao decidir sobre o pedido de guarda, o juiz solicitou uma investigação sobre o comportamento da Anette. “A senhora pode deixar que nós vamos averiguar isso, direitinho e, conforme for, eu vou solicitar uma investigação acerca do comportamento da sua nora e, dependendo do que descobrirmos, eu vou conceder a guarda dessa criança para vocês”. Ele tomou interesse pela questão, mesmo porque ali onde nós morávamos, na Tijuca, era uma região muito boa, com gente de bem, éramos vizinhos de janela de um general muito importante e a senhora dele, dona Cilinha, era unha e carne com mamãe e com a mulher do juiz. Aí veio a audiência. O juiz acabou que… eu não sei como é que se resolve isso lá na Justiça, o juiz acabou dando a guarda, ficou com a minha mãe.

– Com a vó?!

– É, com a tua avó.

– Bom, o tio Ismar estava destrambelhado, a outra era uma louca, então… a Cecília ficou com a avó!

– Ela não era louca. É que, naquele tempo, o adultério…

– Era crime, Yara.

– Absurdo!

– Era crime só o da mulher, ou o do homem também?

– Lola, o do homem só se fosse reiterado. Mulher, só uma vez; o homem tinha que fazer mais de uma vez.

– Ah, eles estão te gozando!

– É isso mesmo, Yara.

– Que vergonha!

– OK, o coro de vocês a vizinhança também escutou, mas vamos deixar o pai continuar.

– Bom, o Ismar promoveu o desquite, ficamos com a guarda de Cecília e aí colocamos a menina no Colégio Santos Anjos, que era um colégio religioso.

– Mas ela tinha oito meses?! Era nenê?

– Não, Lara, nós já estávamos criando ela fazia um tempo. Essas coisas na Justiça tomam tempo. Quando Cecília fez seis anos, Ismar telefonou para Armando, meu irmão.

– Dos Estados Unidos, essa parte eu me lembro.

– Peraí, mãe, o Ismar tinha viajado?

– Ismar foi para os Estados Unidos logo após o desquite, com o amigo.

– E a Anette via essa criança?

– O juiz determinou que a Anette ficaria com a criança todo final de semana, sábado e domingo, Lola. Nós colocamos a Cecília no maternal, ela já tinha quase dois anos, nesse Colégio Santos Anjos, que ficava pertinho, a uma quadra e pouco lá de casa, não precisava nem condução nem nada, mamãe ia buscar ou eu, ou qualquer um de nós, eu era solteiro nessa época. E então, quando Cecília estava com seis anos, ou cinco para seis, Ismar telefonou e disse ao Armando, “Eu quero buscar a Cecília, já estou casado por aqui, já tenho um filhinho e está na hora de buscar a Cecília”.

– Isso já era 1969, então?

– Isso, filho. Ismar queria que Cecília e o menino fossem criados juntos, a nova esposa concordou e, para ele, era hora de resolver o assunto. Armando ponderou que ele não poderia, simplesmente, vir buscar Cecília. “Você precisa de autorização da Anette para viajar com ela. Você não pode levar a criança. Mas peraí, que eu dou um jeito nisso”.

– Isso foi um pouco antes de nós casarmos?

– Foi. 1969. Armando trabalhava em uma empresa de turismo, lá no Rio, e, com os seus camaradas do DOPS, como aquele investigador que subiu o morro, bolou um plano. “Eu me dou muito bem com a Anette, pode deixar que eu arrumo um jeito”.

– Mara do céu, onde foi que você se meteu!

– Mãe, só um pouquinho, eu quero saber uma coisa: Anette tinha contato com a filha? Não entendi essa parte. Ela visitava a menina, tinha contato?

– A Lola me lembrou de uma coisa. Ela mantinha contato sim. Mas Anette tinha arrumado um namorado, e, nos finais de semana, levava esse namorado para o novo apartamento dela, em Copacabana, e todos dormiam junto, Anette, o namorado e Cecília. Aí papai ficou louco da vida. “É que eu não tenho espírito de matador, senão eu já tinha dado um tiro nessa mulher! Não é possível um negócio desses, com uma criança!”. Boa pergunta, Lola, pode perguntar, pois assim eu me lembro dos lances!

– Depois eu tenho uma pergunta bem mais perigosa!

– Calma, pessoal! Deixem o pai continuar. Vai.

– Aí o Armando saiu de casa um dia, bem cedo, com a sua pastinha, que tinha umas folhas de sulfite dentro e telefonou para Anette. “Anette, preciso conversar com você”. Aí, Anette replicou “sim, Armando, sem problemas, mas qual e o assunto?”, e ele “posso passar aí, para conversarmos pessoalmente, para falar com você?”. Armando era malandro para danar. “A mamãe, sabe como é, ela está precisando de um documento para Cecília, para a escola e precisa ser você quem tem de assinar”. Ela nem desconfiou. “Como é esse documento?”. Lembro como se fosse hoje. “Ah, eu nem sei como é esse documento. Faz assim; eu levo uma folha de papel em branco, você assina e nós levamos à escola, para preencher o que eles precisam”. Ela caiu direitinho. “Ah, então tá bom, então venha!”. Armando foi lá, bateu um papo com Anette, esperto que é, deixou ela bem tranquila e arrancou três folhas em branco, assinadas. Até onde Anette tinha firma reconhecida ele descobriu. “É em um cartório lá na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, não tem erro”. Pegou os papéis assinados, enfiou na pasta, foi ao DOPS e falou com o amigo investigador dele. “Negócio é o seguinte; bate aí na máquina: primeiro, um requerimento de passaporte. E, depois, vamos fazer uma autorização para a filha viajar”. Tirou o passaporte, arrumou a autorização, deu entrada no visto americano e, dali umas três semanas, ligou para o Ismar. “Pode vir”. “Mas eu vou ficar só dois dias. Pego ela, dou um beijo em mamãe e volto”. “Mas venha numa segunda-feira, nem no sábado nem no domingo”.

– Ele não via a menina fazia tempo, certo?

– Exato, Lola. Quase seis anos. Ele não tinha voltado desde a época em que mamãe conseguiu a guarda de Cecília. Bom, Ismar fez o que Armando disse. Veio numa segunda, deu um beijo em papai e mamãe, passou a mão na menina e foi embora.

– E Anette?

– Sábado, Anette soube no sábado pela manhã. Ela não entrava lá em casa, então, tocou a campainha da porta externa do prédio e papai a deixou entrar. Dali a pouco, Anette tocou a campainha da porta; papai foi atender. “Sim, Anette?”. Papai estava de robe. “Eu vim buscar a Cecília”. Toda arrogante. “Olha, eu não sei, Anette, só se tu for aos Estados Unidos, pois a esta hora a Cecília já deve ter chegado lá”.

– Meu deus, ela ficou desesperada! Que feia essa estória. Não achei graça nenhuma!

– Que isso, Lola, achei ótima essa estória! Bacaníssima! Essa mulher vivia no “pecado”!

– Que ridículo, logo você, que se acha tão esclarecido!

– Brincadeira, Lola! Não fique braba!             Quem somos nós para julgar os outros?

– Ora, quem mandou Anette ser burra e ter assinado papel em branco?! E sabe quanto tempo ela ficou sem ver Cecília?

– Com advogados bons, deve ter sido rápido.

– Vinte e oito anos, Lola. Vinte e oito sem ver a filha.

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