de Milton Hatoum
Às duas da manhã do primeiro dia do ano escutei num bar a conversa de um casal. Não fui indiscreto: o par falava alto, era um papo para ser ouvido. E olha que chovia uma chuva de canivete, com relâmpagos e trovoadas. Pesquei a conversa no meio.
“Não consulto oráculo nem sou cartomante”, ela riu. “Aliás, quem pode ser adivinha…”
“Adivinha o quê?”, ele perguntou.
“Não te pedi para adivinhar nada. Eu disse que não era uma adivinha.”
“Ah!”
“Só espero que os prefeitos eleitos enterrem a praga nacional”, ela disse.
“Qual praga?”
“O superfaturamento.”
“Das obras?”
“De tudo, até da merenda escolar. São capazes de super-faturar até a sopa para mendigos e desabrigados.”
“Mas alguns políticos fazem isso”, ele disse.
“A sopa? Superfaturamento da sopa? Como?”
“O macarrão e a carne da sopa podem ser superfaturados. O óleo do tempero e até o tempero…”
“Que coisa horrorosa”, ela disse.
“O problema não é a corrupção, que existe em todos os continentes. Nosso problema é a…”
Relâmpagos com trovoadas.
“Não ouvi o que você disse”, ela disse.
Uma trovoada mais forte interrompeu a conversa. Os dois ficaram em silêncio, e eu, que já estava calado, fiquei curioso para ouvir mais. Nós três esperamos o fim dos trovões. Um homem tropeçou, derrubou uma cadeira e deu uma risada.
“Nosso problema é a impunidade”, ele prosseguiu. “O judiciário… Uma parte do judiciário é cúmplice de tudo isso. Os procuradores, a Polícia Federal e alguns juízes são confiáveis, mas eles não podem tudo.”
“E nós?”, ela perguntou.
“Nós? Nós pagamos impostos. Somos cordeiros resignados no meio de milhões de cordeiros sacrificados.”
“Mas você acha que é possível diminuir a bandalheira? Por exemplo, uma redução de trinta por cento… Seriam bilhões de reais investidos em habitação popular, hospitais.”
“Trinta por cento? Se a corrupção diminuir tanto, o Brasil cresce oito por cento ao ano. Mas não sou otimista: trinta por cento é a comissão das negociatas. Já foi dez, passou para vinte, agora dizem que é trinta. Quando chegar a cinquenta, será uma catástrofe…”
“Por isso meu avô apoiava os militares.”
“Teu avô acreditava que o governo militar era duro, mas honesto. E olha no que deu.”
“Acho que aquele sujeito bebeu muito”, ela disse. “Vai mexer conosco. Vamos mudar de mesa? Aquela ali no canto, perto do balcão…”
“Além disso, teu avô idolatrava a censura. Ele dizia: ‘Mais vale um soneto de Camões ou uma receita de bacalhau do que notícias subversivas’.”
“Coitado do vovô!”
“Coitado do país, isso sim.”
“Ele gostava de você”, ela disse.
“Nem tanto”, ele protestou. “Uma vez me ameaçou porque eu usava barba. Me chamou de terrorista. Você não lembra?”
“Claro que lembro. E você disse na cara dele: ‘O senhor apoia a tortura.”
“O velho era um tremendo reaça…”
“Não vamos brigar por causa dele. Era um homem bom, cheio de princípios.”
“Casei com urna ingênua”, ele disse.
“E eu com um comunista”, ela riu.
“Agora não há mais avô nem comunismo”, ele disse. “Há burocracia, roubo e ganância. Impostos e juros altos para sustentar políticos e burocratas. Mais uma cerveja? Você quer mesmo ir para aquela mesa?”
“A chuva está passando. Quero ir pra casa. O bar está vazio, só ficou esse bêbado”, ela disse.
“E aquele cara ali, que está ouvindo a nossa conversa.”
“Um solitário”, ela disse.
“Um solitário… Mas por que você está olhando para ele?”
“Não posso olhar para um homem sozinho nas primeiras horas do Ano-Novo? Você está com ciúme?”
“Não. Não sei. Mas se você olhar muito…”
“Queria saber o que ele pensa sobre a corrupção.”
Os dois me olharam e eu olhei os pés do bêbado. Na verdade, era um mendigo que se protegia da chuva. Batia palmas e pedia uns trocados.
“Quem esse bêbado está aplaudindo?”, ela perguntou.
“Nós”, ele disse. “Nossa conversa sobre corrupção e impunidade. O impasse do Brasil.”
Ela se levantou: queria ir embora.
“Porque a gente fala, protesta e fica indignado, mas só os bêbados escutam”, ele prosseguiu, deixando uma cédula na mesa.
“Aquele cara escutou nossa conversa”, disse a mulher
“Mas o que ele pode fazer? Nada. Vai ver que é mais um bêbado solitário.”
“Será?”, ela perguntou, olhando para mim e depois para as mãos do mendigo.