9:27Trama de Penélope

por Fernando Muniz 

        No caminho de casa para o trabalho tem uma pequena praça, onde as crianças se divertem entre escorregadores e carrosséis descascados, roídos pelo tempo.

As folhas das árvores caem pelo chão e o vento as varre com um som tranquilo, apesar do frio daquela manhã.

O barulho das crianças traz uma sensação calma e boa, de quem não carrega qualquer preocupação. Muito ao contrário do que se passa na cabeça do rapaz, envolto em seu sobretudo e em antigas memórias.

Não é culpa, não é vergonha, muito menos dor, mas talvez uma inquietação lá no fundo, que por vezes aparece, feito reprimenda, mas logo vai embora.

Na época, tudo conspirava contra. “Éramos jovens, uma vida promissora pela frente, tudo se tornaria mais difícil”, e, conformado com a situação, o rapaz se deixou levar pelas circunstâncias e pela lógica implacável das convenções sociais, a tornar inviável qualquer alternativa.

Não que o fato tenha abalado o namoro, ou melhor, o vínculo entre eles, pois o que alimentavam não era exclusivo. Ele saía com outras, ela saía com outros e outras e as sensações eram boas, viciantes mesmo.

No dia em que soube, a primeira reação foi se defender, sem chão diante da notícia aterradora.

– Será que é meu mesmo? E os teus outros amigos, o que disseram?

A moça, convicta, excluiu qualquer outra possibilidade, mas sem a mínima explicação plausível, na crença de naqueles dias ela teria sido só dele, ou que ele seria o único em condições de acompanhá-la naquela situação, sem destruir a teia em que estavam metidos.

– Confie em mim, é teu.

Parados em frente à clínica clandestina, a vida como estanca sua marcha, à espera de alguma mudança nos ventos ou, ainda, que desabe alguma tempestade. Que não vieram e, de roldão, as dúvidas são suspensas, um impulso carrega o rapaz e a moça, perdidos entre si, sem tempo de pensar nas consequências ou implicações daquilo tudo, e, sem qualquer convicção, seguem o que soa mais lógico e razoável.

– Não precisa entrar. Depois nos falamos.

Apenas o medo os acompanharia dali por diante, até tudo isso se esvaísse nas rotinas cotidianas, rumo ao inconsciente. Pelo menos era o de se esperar.

Mas o desconforto não foi embora. “Por que não me convenço logo dessa dúvida e toco a vida adiante, sem olhar para trás?”. Não sabe, não quer saber, melhor, no fundo recusa o suave torpor de contradições não resolvidas e, por isso, ele sabe, esse dilema vai ser lançado contra ele para todo o sempre.

No parque, uma das crianças cai no chão, começa a chorar. A mãe chega perto, limpa as folhas e a sujeira da roupa e a abraça, com carinho. O rapaz lembra-se da esposa e filhos, em casa, aconchegados em uma vida feliz e que tornam o seu dia pleno de sentido.

O desconforto aumenta, volta a mordê-lo. Não há o que o afaste daquelas lembranças; permanecerão com ele tempo afora, testemunhos de uma época em que a multidão de tramas à sua volta substituía quaisquer compromissos e tornavam a vida intensa, passageira, rápida demais, letal demais.

Não há o que fazer, apenas recordar. Nunca esquecer. Essa sensação o reconforta, como se o testemunho daquele tempo o absolvesse. “Mas do que sou acusado? Melhor: quem me acusa? Faz anos que não a encontro; a vida nos perdeu um ao outro; por que ainda me ocupo disso?”.

De fato, não há libelo algum contra o rapaz. Mas, afinal, isso não importa. O vínculo dele com tudo aquilo é eterno, sanguíneo.

Um carro passa pela rua. Esse movimento o lembra dos compromissos e reuniões daquela manhã. Volta a caminhar rápido, sobre as folhas. As crianças ficam para trás e desaparecem, após a esquina.

O dia retorna ao seu lugar. Ou parece retornar, ao menos. Pela rua afora, a cobrir as folhas, a luz oblíqua do sol de outono lança mais de uma sombra a partir do rapaz.

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