por Ruy Castro
Mais uma história comovente envolvendo a tragédia da Chapecoense aconteceu nos últimos dias. Foi quando o jogador Neto, um dos poucos sobreviventes da queda do avião e já saindo do estado desesperador em que se encontrava, começou a perguntar o resultado do jogo contra o Atlético Nacional e o que acontecera em campo para que ele ficasse tão machucado. Como contar-lhe que a partida nunca se realizara, que o avião caíra a poucos minutos do pouso e 71 pessoas a bordo haviam morrido, entre os quais 19 de seus companheiros de equipe?
Para Neto — e para todos naquele voo, exceto talvez os pilotos —, as luzes do avião tinham se apagado, só isso. Nenhum deles sentiu o choque contra o morro poucos segundos depois, porque foram abençoados com a instantânea e simultânea inconsciência. Para os poucos que abriram os olhos, dali a horas ou dias, a vida ganhara um hiato que eles nunca serão capazes de preencher.
Todos nós, alguma vez, já protagonizamos uma passagem, menos ou mais grave, de que não fomos testemunhas e não temos memória. Passei por isso há anos num episódio de saúde que durou cinco horas de inconsciência e de cujos detalhes só fiquei sabendo pela sua descrição por Heloisa Seixas em seu livro “O Oitavo Selo”. É estranhíssimo. Ao ler sobre o que fizemos e não nos lembramos, a ação se transfere sem aviso para um narrador de fora — como se, de repente, passássemos a viver na terceira pessoa.
Só nesta terça-feira (13), 13 dias depois do acidente, Neto teve conhecimento do que lhe aconteceu. Foi chocante, mas ele se agarrou a uma reação previsível e salvadora nessas situações — a de ter sido poupado porque a vida ainda espera dele coisas importantes.
Talvez não. Talvez só espere dele que viva. O que, até para quem nunca beijou a morte, às vezes já é muito.
*Publicado na Folha de S.Paulo