Sorte de quem conheceu Dom Paulo Evaristo Arns, mesmo que por poucos instantes. Era santo – e corintiano. O repórter estagiário recebeu a missão, em 1977, pouco anos de o time do arcebispo de São Paulo quebrar o tabu de 23 anos sem ganhar o título do campeonato paulista, para lhe pedir um texto sobre o Timão. Fui na arquidiocese, ele me recebeu com o mesmo sorriso tranquilo de sempre, estendeu a mão direita – e o atrapalhado, em vez de beijar o anel, apertou-a. Ele ouviu o pedido e não só disse sim como aceitou também posar para uma foto mostrando a camisa da sua grande paixão futebolística. Às vezes penso que se não fosse essa força Basílio não teria feito o gol contra a Ponte Preta e enlouquecido a nação alvinegra. Na manhã seguinte à conquista, todas as bancas de São Paulo estampavam o exemplar da edição especial da revista Placar, impresso no dobro do tamanho normal. Em uma semana mais de um milhão de exemplares foram vendidos. Naquelas páginas, está lá a declaração de amor de Dom Paulo, que enviou-a até antes do prazo estipulado. O repórter, santista de origem, se orgulha até hoje de ter recebido aquela missão e conhecido um homem mais que especial, ser humano raríssimo, um santo protetor dos desvalidos e perseguidos – e torcedor porque apaixonado pela vida. Que Deus o tenha. Amém.
Além de corintiano, Dom Paulo estava muito além da igreja a que pertencia e era muito mais que um prelado do colégio pontifício. Quando completou 90 anos, época em que a Santa Sé tratava da canonização do papa João Paulo II, escrevi aqui neste blog que, mesmo vivo, Dom Paulo Evaristo Arns reunia mais condições do que o Santo Padre para a santificação. E não exagerava: ainda que restrito ao território nacional do Brasil, Dom Paulo teve uma atuação bem mais eficiente, proveitosa e corajosa que o então papa na luta em favor dos oprimidos, dos desvalidos sociais e dos injustiçados. Era um homem de fé, mas, muito mais do que isso, sempre foi um homem de princípios, de decisões, de luta e de muita coragem. Figurava e figurará sempre na galeria dos heróis desta nação.
Em nome da democracia e em defesa dos direitos humanos, Dom Paulo Evaristo enfrentou a ditadura militar, desafiando generais, torturadores e até mesmo figuras exponenciais da própria Igreja Católica. Denunciou a tortura no Brasil, visitou prisioneiros e foi a Brasília reclamar junto ao então presidente Medici. Conta-se que o general, depois de esmurrar a mesa, enxotou-o do palácio. Dom Paulo não se intimidou e abriu a Catedral da Sé para um culto multirreligioso em memória do jornalista Vladimir Herzog, morto nos porões do II Exército. Durante a crise do mensalão, disse-se decepcionado com o ex-metalúrgico Lula, a quem sempre apoiou nos movimentos operários do ABC paulista.
Um de seus primeiros atos como cardeal arrepiou o Vaticano: vendeu o Palácio Episcopal por R$ 5 milhões e aplicou o dinheiro em núcleos comunitários da periferia de São Paulo. Foi retaliado: sua diocese foi dividida em cinco, para esvaziar o seu poder. Pouco adiantou.
Já sofrera dois enfartes, retirara a próstata, vencera um câncer no olho esquerdo, sobrevivera a um grave desastre automobilístico, extraíra a vesícula e teve infecção pulmonar, mas nunca se entregou. “Esperança sempre” era o seu lema. Não tinha medo da morte, mas dizia não ter pressa, embora tivesse parte com os anjos e fosse íntimo de Deus. Como já tinha auréola, hoje foi ao encontro deles. Segue em paz, Dom Paulo.