6:58Criança, pobre de mim

por José Maria Correia    

Criança, pobre de mim, que ainda aprendendo a falar já era aterrorizado com o fogo do inferno.
Não bastasse a finitude, a morte, havia ainda a expiação eterna.
Pobre de mim que por minha máxima culpa soube que por pecado original causei a perda do paraíso .
Que havia partes proibidas do meu corpo – e se causasse prazer tocando em meu sexo ficaria cego.
Que deveria me confessar de joelhos e seguir as tenebrosas penitências severas.
E se não confessasse, ao comungar a hóstia sagrada se converteria em sangue em meus lábios.
Era o Deus do horror, da procissão do senhor morto ao som das terríveis matracas levadas pelos homens de capuzes negros.
Penso que fui bem educado pelas convenções, não em casa, mas na rua e na igreja aprendendo no catecismo popular que os judeus jamais chegariam aos céus, assim como os protestantes.
Que as mulheres separadas se tornavam disponíveis à todos e que as pobres amantes perdidamente apaixonadas por homens comprometidos não valiam mais que prostitutas.
E que as prostitutas podiam, sim, serem surradas impunemente.
Que os doentes deformados deviam estar escondidos em quartos fechados .
E que os jovens em busca das drogas não lícitas deveriam ser internados em manicômios até enlouquecerem .
Que os negros na televisão não eram nada discriminados, tinham seus espaços, eram os empregados domésticos e para um papel maior um branco seria tingido.
Tia Anastácia e Mamãe Dolores sabiam bem disso.
Que ser músico , escritor e poeta era coisa de desocupado ,e que viemos à este mundo somente à trabalho e mais trabalho.
Que um homem verdadeiro jamais expressa suas emoções ou chora como nossos pais não choravam.
Bem, mas no cinema havia mais erudição, tive grandes aulas sobre geopolítica e antropologia explicando a ferocidade dos índios norte-americanos, bêbados que escalpelavam e estupravam as donzelas loiras e por isso deveriam ser exterminados e expulsos de suas terras, como foram.

Também descobri que na guerra o lado dos bandidos era o dos árabes que resistiam aos colonizadores, assim como os italianos eram todos mafiosos e os nobres ingleses com seus navios e canhões desbaratavam as quadrilhas de chineses traficantes de ópio para assegurar o monopólio da rainha.
Que espanhóis e portugueses vieram salvar nossos povos primitivos de suas crenças e deuses como os cruzados salvaram os muçulmanos pelo fio da espada com os batismos de sangue.
Claro, logo soube que os russos estavam chegando e viriam de muito longe para tomar meu quarto e meus brinquedos.
Aprendi ainda que a menina inocente que perdia a virgindade por amor e sedução juvenil era galinha.

E os meninos que gostavam de rapazes eram veados e tinham que apanhar para aprender a serem homens e sofrer bullying com apelidos jocosos .
E no ginásio descobri que finalmente os militares iriam salvar o país fechando os parlamentos, os sindicatos e os grêmios estudantis.
Que era importante queimar livros, censurar filmes e peças de teatro.
E que as chamas das fogueiras da inquisição e da intolerância continuam muito vivas e os muros entre os povos não param de ser erguidos .
Aprendi muitas coisas úteis sobre a superioridade da raça branca, a inferioridade dos emigrantes que não podiam frequentar os clubes tradicionais fundados por também emigrados e seus filhos.
Sobre a prevalência dos mais ricos e a importância das aparências sobre todas as coisas.
E quando imaginei que pudesse ter sido afinal deseducado dessa forma tão indigna , vi que no país mais poderoso do mundo o líder eleito pela maioria do povo é a síntese disso tudo: Donald Trump.

Uma ideia sobre “Criança, pobre de mim

  1. Parreiras Rodrigues

    Grande Zé Maria. Falando de mim, também. E me ensinaram que Deus era um velho muito brabo. Que uma folha não cai da árvore sem a ordem dele. No seminário que estudei, era proibido ler Manchete, O Cruzeiro, gibi então, nem pensar. E se batesse punheta, cresceria cabelos na palma da mão.

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