6:45Uma admirável lição

Por Ivan Schmidt 

No início de 1958 o cronista Rubem Braga (é absolutamente necessário voltar a personalidades de tamanho brilho), escreveu “Ai de ti, Copacabana!”, sua crônica semanal na revista Manchete, que muitos leitores e amigos consideraram uma espécie de zombaria à “princesinha do mar”, à época, uma canção interpretada pelo conhecido cantor Dick Farney.

O texto que se tornaria premonitório utilizava linguagem apocalíptica ao prever a invasão e destruição do mítico bairro carioca, segundo anotaria o biógrafo Marco Antonio de Carvalho em Rubem Braga, um cigano fazendeiro do ar (Globo, SP, 2007), de onde transcrevo informações coletadas em exaustivo trabalho de reconstituição e pesquisa do citado jornalista, também nascido em Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo, terra natal de Rubem.

O título da crônica seria dado ao seguinte livro editado por Braga, dois anos depois, um grande sucesso de vendas. “Tudo por causa da exclamação”, diria ele a Luiz Carlos Maciel, do Pasquim: “Se não fosse pela exclamação no título, ninguém prestaria atenção”.

Carvalho conta que no dia 29 de junho de 1958, Rubem se trancou em casa, dispensou a empregada e não atendeu sequer o telefone. “Antes, avisara que queria ficar sozinho, e que não aceitaria convites para ouvir a final da Copa do Mundo da Suécia entre amigos”.  Acrescentou que o próprio cronista arrumaria a casa e ficaria concentrado “certo de que qualquer desvio de atenção poderia por tudo a perder no estádio de Rasunda, em Estocolmo”.

Tempos depois o próprio Rubem lembraria que a Suécia fez o primeiro gol, mas tudo seria diferente se Didi fizesse aquilo que haviam conversado, em sonho: pegasse a bola de dentro do gol e a levasse, em passos majestosos até o centro do campo, como se dissesse: “Eles vão ver, não perdem por esperar”.

A picardia do cronista capixaba, homem à frente de seu tempo, iria adiante num comentário pra lá de eufórico anotado pelo biógrafo: “O meia botafoguense começou a lançar Garrincha, pela direita, atendendo aos comandos do Braga – e Vavá fez dois gols em sequência”. O pormenor precioso é que “Rubem disse a Zagalo para recuar e apoiar a defesa, o que fez com que o ponta-esquerda rubro-negro rebatesse uma bola que certamente entraria no arco de Gilmar; insistiu ainda que o mesmo Zagalo voltasse ao ataque e esperasse um rebote da defesa sueca para, então, marcar o quarto gol brasileiro”.

A vitória estava clara e insofismável, esganiçavam os narradores e comentaristas das rádios brasileiras na Suécia, mas Rubem ainda não se sentia satisfeito porque os nórdicos marcariam seu segundo gol. Genial foi, entretanto, o levantamento de Zagalo para a cabeça de Pelé, no quinto e definitivo gol brasileiro. Tudo aconteceu como Rubem havia ensaiado com os jogadores: “Então, suado, exausto e feliz, entro na fila para receber o aperto de mão do Rei Gustavo”, diria mais tarde embalado pelo seu coração de passarinho.

Chega o ano de 1959 e com ele o início da campanha presidencial que levaria Rubem a reclamar do barulho dos carros de propaganda que passavam pelas ruas. Entre os candidatos à presidência estava o marechal Teixeira Lott, militar de digna reputação e apego à democracia, fato notabilizado pela garantia que havia dado, em 1955, à posse do presidente Juscelino Kubitschek.

O biógrafo registrou, no entanto, que Rubem se renderia ao histrionismo de Jânio Quadros – como milhões de brasileiros (incluindo o escriba dessas linhas): “Jânio não era muito confiável, era por demais populista, mas, para Braga, tinha um trunfo definitivo: nada havia nele da herança getulista. O populismo de Jânio, porém, era tal que o levaria a compor até um rock-calipso, ritmo da moda, música de Rossini Pinto, aquele que mais tarde municiaria um iniciante Roberto Carlos com rocks simplórios”.

Aventureiro, personalista, autoritário, mulherengo, representante do falso moralismo da pequena burguesia – os correligionários sabiam muito bem e, logo a maioria da população, que Jânio era chegado a uma cerveja acompanhada de uma dose de Steinhager.

Aliás, o repórter Joel Silveira, colega de Rubem como correspondente na Segunda Guerra Mundial, dizia que Jânio “era capaz de beber qualquer coisa que lhe oferecessem”. Se Rubem Braga sabia dessas coisas não daria a menor bola, porque em tempo de eleição (e guerra), a primeira derrota é da verdade, de vez que sobrenadava a cínica conclusão “só não vale ter menos votos que os adversários”.

A definição de Braga em apoio à candidatura presidencial de Jânio (os comunistas apoiaram Juscelino), embora o cronista não fosse um deles passou a receber ataques frontais de expressivas figuras do PC, a exemplo de Di Cavalcanti, que publicou uma carta dura na Última Hora (27 de setembro de 1959), censurando a atitude do capixaba.

Na biografia em foco está dito que a resposta de Braga é que não tem temperamento para apegar-se ao formalismo de quaisquer agremiações. Além do mais, escreveu Carvalho, o PC instituiu por certo tempo uma regra que obrigava os filiados a evitar aqueles que “não fossem solidários com a causa”. O artigo 13 do estatuto do Partido Comunista Brasileiro estipulava: “É proibido ao militante do partido qualquer contato direto ou indireto com trotskistas ou outros inimigos da classe operária” e, nesse caso Braga era um deles, assim como Stanislaw Ponte Preta que cunhara a máxima que irritaria profundamente os comunistas: “O capitalismo é a exploração do homem pelo homem. O comunismo é exatamente o contrário”.

Rubem, na verdade, pouco se importava com as acusações vindas dos comunistas, pois seu parâmetro era a oposição a Getúlio Vargas, às ditaduras e ao desgoverno “como o que ocorreu com João Goulart logo depois e com o ‘enjoado” Sarney, como o batizou, anos mais tarde”.

Em análise escorreita Carvalho é de opinião que “o primarismo dos anticomunistas , que viam tudo que era soviético como ‘obra do capeta’”, deixava Rubem profundamente irritado, embora acontecesse o mesmo “com a visão comunista que divisava em tudo que era norte-americano a corrupção, o imperialismo, a bestialidade, a ignorância. E a história de cumprir tarefas, diria, lembrava a escola primária”.

Estrangeiro recém-chegado ao Brasil no início dos anos 60 do século passado achava a situação inintelegível. O marechal Lott era o candidato apoiado pelo presidente Juscelino Kubitschek e por dois partidos, “um de homens de negócios e latifundiários, outro de trabalhadores, além dos fascistas de Plínio Salgado, os comunistas de Prestes e pela direita de Amaral Neto e sua revista Maquis (em que o repórter faria sua campanha contra a ‘roubalheira’ de JK e constantes apelos a Lott, ‘o homem que não rouba’); do outro lado, o populista Jânio, apoiado pela elitista UDN e considerado ‘entreguista’ e a serviço do imperialismo norte-americano, apesar de se declarar a favor do reatamento de relações com a União Soviética e simpatizar abertamente com a revolução cubana”.

Um ano depois, contudo, com a renúncia de Quadros “os comunistas se esqueceriam de tudo que haviam dito e repetiriam que o presidente tinha sido liquidado pelo imperialismo norte-americano”.

Para Rubem foi a gota d’água e o abandono radical das discussões políticas ou partidárias, até revelar seu “inteiro asco por debates sobre esse tema”. A conclusão do biógrafo é extremamente lúcida: “É um cético, e talvez apenas Machado de Assis seja mais que ele em questões que envolvam política. É parente do romancista nesse sentido, homens que sabem que o partidarismo parece exigir do ser humano apenas o que há nele de mais mesquinho”.

Aprendamos todos essa admirável lição.

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