6:53DESFINADOS

por José Maria Correia

Não sou judeu, adventista ou muçulmano.
Poderia ser ,entretanto,e honrosamente .
Sem preconceito algum pois me reconheço mais como universalista.
Um que como livre pensador respeita profundamente todas as religiões e crenças de todos os povos.
Sem as correntes e prisões dos dogmas e da intolerância.
Tenho mais afinidade com quem não cultua o dia de Finados.
Meus motivos são consideráveis.
Uma infância feliz mas plena de cerimônias de lutos e de grandes silêncios abissais entrecortados por choros e lamentos terríveis que presenciei.
A mãe, em seu espírito caridoso, jamais me poupou desses momentos, para mim terríveis .
Pequenino,tímido e envergonhado em minhas calças curtas de suspensórios, minha testa mal alcançava a altura dos caixões para perto dos quais eu era arrastado em um exercício de disciplina de solidariedade com vizinhos,parentes e conhecidos.
À noite, apavorado em minha cama eu tinha pesadelos com os véus negros cobrindo as faces das mulheres que choravam um coro de Verônicas compadecidas na câmara ardente , a sala da casa onde ficavam também as carpideiras em seus vestidos de luto.
Nada porém  me assustava mais que os chumaços de algodão nas narinas do defunto contrastando com o cinza da face descolorida.
-É para não sangrar na gravata, me explicava o irmão, também criança como eu.
-É para não sair sangue .
Tinha pena do amigo de oito anos que com minha idade se tornara órfão.
Um órfão , como um menino sofrido, personagem de um conto de Charles Dickens.
Para mim inaceitável.
Pais não morriam.
O sentimento mais forte não surgia do medo da morte.
Vinha do conjunto da obra, da produção, do cenário do culto do trágico.
Os protagonistas em desespero ,o padre de  batina a aspergir água benta em meio ao ritual do Pai Nosso .
A sala com as janelas fechadas , as velas derretendo nos castiçais exalavam um cheiro de adeus, de nunca mais.
Vez por outra uma carpideira se aproximava do morto e  colocava um espelho junto a boca para conferir , se não embaçasse com respiração imperceptível , é porque a vida tinha se ido por inteira.
Esse era o primeiro ato, o Velório.
O segundo ato vinha a seguir, todos embarcando em seus automóveis seguiam em cortejo de Buicks, Chevrolets, Fords,Oldsmobiles, Dodges, Citroens, Simcas e Aero-Willys.
Por onde passavam os homens circunspectos  nas calçadas retiravam os  chapéus em sinal de respeito e voltavam os olhos para o chão.
Finalmente o último ato.
A chegada ao cemitério onde todos já se aglomeravam junto aos enormes portões  de ferro.
Tinha início a derradeira caminhada.
A mãe sempre solícita e voluntária de primeira hora, logo me arrastava pela mão e seguíamos junto a carreta que suportava  o caixão brilhando sob o sol refletido no verniz espelhado.
À frente ia o viúvo ou a viúva , a noiva da perda definitiva, sempre com um buquê, um ramo de flores nas mãos tremulas e um olhar distante, desolado ,prenúncio do abandono das paixões da carne que se seguiria  como exigência do recato.
Naquela extensa via dolorosa eu ia ouvindo o som sincopado dos saltos femininos sobre as pedras negras gastas pelos séculos dos séquitos fúnebres.
Seguíamos por entre as alamedas de ciprestes ornadas com esculturas de anjos barrocos , faces de crianças,  e as muitas cruzes de bronze com o Cristo em sua agonia.
Olhando para dentro dos mausoléus , capelas e pirâmides egípcias eu via as fotografias esmaecidas dos mortos, objetos estranhos, roupas e lembranças deixadas pelos vivos.
Quantas vezes terei lido nas lápides a frase “Saudades Eternas”.
Depois, durante o enterro, eu procurando me esconder entre as pernas dos adultos e os casacos longos das tias ouvia só o estalar das colheres dos coveiros quebrando tijolos  e preparando a massa de cimento para lacrar  a sepultura.
Uma vez, angustiado com o choro que ouvia, fugi antes do fim da cerimônia.
Desorientado em meus oito anos corri entre os labirintos e vielas e  fui parar  no morro da enorme Cruz das Almas em meio à fogueira das velas e os riachos de cera incandescente escorrendo pelas calçadas.
Foi a cena mais parecida com as gravuras bíblicas do Juízo Final que eu já havia visto.
Apavorado corri novamente e pela alameda lateral dos ossários dos desvalidos.
Ali, junto ao imenso muro lateral, estavam expostos em gavetas abertas, crânios e tíbias em estado de abandono, símbolos iguais aos que eu conhecia das bandeiras negras dos piratas nos filmes de Errol Flynn que eu assistia nas matinês  no  Cine Curitiba.
O que eu mais queria era achar a saída e a única referência nesse sentido para mim era o túmulo dos milagres da lavadeira assassinada, Maria Bueno, para onde me dirigi e consegui bastante  aliviado ser encontrado pela mãe que me recebeu com um longo abraço.
Uns passos a mais e finalmente cruzamos os umbrais dos portões encerrando a  Via Sacra daquele dia e me libertei momentaneamente  do sentimento de derrota da vida.
Assim foi parte da minha infância, a dos funerais que se repetiram muitas vezes mas nunca suficientes para torna-la menos alegre, menos feliz.
Depois de muitas décadas e de tanto subir as colinas sagradas por onde levei meus melhores amigos, alguns amores da juventude, até mesmo o pai e a mãe com imensa dor,me habituei com esses trajetos inexoráveis da orfandade.
Talvez fosse para o que a mãe vinha me preparando desde criança.

E assim passei a encarar a morte do corpo físico com outro enfoque,sem a morbidez  tétrica que  tanto me impressionava.
Com  o saudoso Reverendo Elias Abrahão adotei esse ciclo de tristeza como sendo verdadeiramente o ciclo da despedida amorosa e um rito de passagem.
Mesma concepção que encontro nos sermões do Papa Francisco.
A do desencontro como possibilidade do encontro através da fé.
Aprendi também , vindo de longe , a aceitar o grande mistério e enigma da existência interrompida sob o prisma da esperança Abrahâmica, a que não fenece nunca.
E também  com a interpretação holística,mais filosófica e menos dogmática e religiosa.
Sentindo a mim , e aos que foram antes que eu me vá ,como fragmentos e partículas do imenso Universo , onde o tempo como nós o contamos, não existe, é mera ficção.
Nas palavras do monge e poeta Ernesto Cardenal,”Sentir que não estamos sós no Cosmos, na imensidão das Galáxias.”
E dessa forma, assim pensando, o luto, as sombras e a escuridão tão temidas na minha infância foram se tornando na maturidade em  luzes.
Luzes como metáforas do  alvorecer e do crepúsculo que se repetem todos os dias, na antiguidade da grande mãe Gaya desde todas as nossas vidas mais primitivas.
Entre nosso temor noturno e o nosso despertar.
Nesse prisma de compaixão nossos mais amados ficam para sempre lembrados e inesquecíivelmente encantados  em nossas preces, nossos sonhos e nossos corações.
Para mim deixaram  de ser os chamados finados e os vejo agora  como passageiros em viagem em outro plano, onde não há matéria conhecida e a ciência sofre todos os desafios.
Vão em busca do destino comum entre os astros e para onde rumamos todos , como peregrinos que voltam para onde nasceram.
Somos filhos desse círculo de eternidade para o qual surgimos vindos da gravidez luminosa do paraíso do ventre materno e dele desaparecemos como banidos para buscar a ressurreição.
É no que creio.
E o contrário dessa crença é o grande silêncio.

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