14:52Heroína lá, crack aqui

A repórter Patrícia Campos Mello foi aos EUA e produziu excelente reportagem sobre a morte por overdose de heroína naquele país. O mote é a campanha presidencial, o que os dois candidatos prometem fazer como política pública para atacar este problema. O motivo: em 2014, houve 47 mil americanos morreram desta forma, mais que as causadas por acidentes de carro (32,6 mil) (ver texto abaixo). Por aqui alguém ouviu alguma coisa a respeito do problema do crack (que foi epidemia nos EUA nos anos 80/90) entre os candidatos que disputaram a prefeitura de Curitiba? Talvez porque não há cracolândias expostas como em São Paulo, mas elas existem em barracos dentro das favelas, onde os usuários são controlados pelos traficantes e fazem qualquer coisa para obter pedras, depois que o dinheiro e bens de casa terminaram. Chacinas em Curitiba apareceram depois da chegada desta droga que está presente em todos os municípios brasileiros. É uma forma de o “patrão” demonstrar que tem o controle da área e não aceita dívidas. Quem consome o produto que recebe para vender, é assassinado junto com família e quem estiver junto. 

Mortes por opiáceos nos EUA viram caso de saúde e contaminam a campanha

PATRÍCIA CAMPOS MELLO
ENVIADA ESPECIAL A MCKEESPORT, PENSILVÂNIA

Na segunda-feira de manhã, a menina Rowen, de 7 anos, deu uma mamadeira para Alyssa, sua irmãzinha de 9 meses, e a colocou no berço. Pegou sua mochila e foi esperar o ônibus da escola. Disse ao motorista que seus pais estavam muito pálidos e que ela não conseguia acordá-los.

Avisada, a polícia foi até a casa onde Rowen morava com Alyssa e mais dois irmãos, de 3 e 5 anos, na cidade de McKeesport. No meio do lixo acumulado, das roupas de criança e fraldas sujas jogadas pela casa, policiais encontraram Jessica Lally, 25, e Christopher Dilly, 26, mortos. Eles haviam sofrido uma overdose de heroína na sexta-feira, dia 30 de setembro de 2016.

As quatro crianças passaram três dias sozinhas em casa, com seus pais mortos no meio da sala.

Naquele mesmo dia, um homem de 50 anos foi encontrado morto na mesma avenida Evans de McKeesport, quatro quarteirões para baixo. Outra vítima de overdose de heroína.

“No começo ela só tomava umas pílulas, nada sério. Mas aí desandou”, contou à Folha Jean Barefoot, 58, mãe de Jessica. Ela lembrou que a filha só tirava A na escola, jogava beisebol e queria estudar biologia marinha. “Veio essa droga e acabou com tudo.”com tudo.”

Como Jessica, 2,6 milhões de americanos ficaram viciados em analgésicos opiáceos (baseados em morfina) como Vicodin, Oxycontin e Percocet. Muitos começaram tomando o remédio depois de alguma lesão e acabaram dependentes. Outros ouviram falar que as pílulas “davam barato” e resolveram experimentar.

O vício é caro, podendo consumir US$ 200 por dia. Por isso, muitos acabam migrando para a heroína barata trazida do México, entre US$ 5 a US$ 7 por saquinho. Mais de 70% dos viciados em heroína começaram usando analgésicos opiáceos.

Em 2014, 47 mil americanos morreram de overdose, quase 70% por causa de heroína ou opiáceos. Drogas matam mais do que acidentes de carro (32,6 mil em 2014) nos Estados Unidos.

A dependência de heroína e opiáceos já é uma epidemia no país: o número de mortes por overdose dessas substâncias aumentou 248% entre 2010 e 2014.

E esse é um dos principais problemas de saúde pública que será enfrentado pelo próximo presidente do país. O presidente Barack Obama requisitou ao Congresso a liberação de US$ 1,1 bilhão para lidar com a crise. O republicano Donald Trump quer restringir a fabricação dos analgésicos opiáceos. Segundo ele, o muro que pretende construir na fronteira com o México vai interromper o fluxo de drogas para o país. A democrata Hillary Clinton prometeu US$ 10 bilhões para aumentar o acesso a serviços de prevenção e recuperação.

Ao contrário da epidemia de crack dos anos 1980 e 1990, que atingia principalmente a população negra e pobre, heroína e opiáceos são usados principalmente por brancos, de todas as faixas de renda.

“É uma epidemia silenciosa, há muitos jovens brancos em bairros ricos morrendo. As pessoas têm vergonha de dizer ‘meu filho morreu de overdose’; falam que ele teve um ataque cardíaco”, disse à Folha Sam Quinones, autor do premiado livro “Dreamland: The True Tale of America’s Opiate Epidemic”.

É muito diferente da imagem estereotipada do viciado em heroína que morre no meio da rua com uma seringa espetada no braço. Como a heroína agora é muito mais pura, muitos cheiram ou fumam, dentro de suas casas ou carros.

“É uma história que se repete: um adolescente se machuca jogando futebol na escola, vai ao médico e ganha uma receita para 50 pílulas de um analgésico opiáceo. Ele é suscetível e pronto, fica viciado”, disse à Folha David Hickton, procurador da Pensilvânia. Hickton foi o coordenador da força tarefa contra heroína da Casa Branca.

“Não processamos dependentes, eles são doentes, estamos atrás dos traficantes; as prisões já estão lotadas, prender mais gente não vai resolver esse problema”, disse Hickton.

Quando ficou evidente que havia um descontrole no uso dos analgésicos opiáceos, no fim dos anos 2000, o governo iniciou uma grande repressão às chamadas “fábricas de pílulas”, onde médicos inescrupulosos vendiam receitas. Resultado: ficou muito mais difícil e caro comprar as pílulas.

“Os cartéis de drogas foram oportunistas, viram onde o mercado de pílulas estava bombando e começaram a introduzir a heroína barata:
pessoas que tinham um vício de US$ 200 por dia com pílulas trocaram para US$ 50 por dia com heroína”, diz.

Os traficantes ficavam no estacionamento de clínicas de reabilitação oferecendo heroína grátis para os usuários tentando se livrar dos opiáceos, conta.

“Nós tiramos o Vicodin do mercado, mas eles inundaram os EUA com outras drogas similares e mais potentes.”

Uma delas é o fentanyl, um opiáceo 50 vezes mais potente do que a heroína, que matou 5,5 mil pessoas em 2014.

Hickton conta que mais de 90% dos crimes de sua região –arrombamentos, furtos em lojas, roubos a mão armada– estão ligados a opiáceos.

Segundo Roneice Freeman, diretora do Centro para Espiritualidade e Recuperação em 12 passos, em Pittsburgh, há cinco anos, mais de 90% dos dependentes com quem ela trabalhava eram usuários de crack. Agora, mais de 70% são dependentes de heroína. “A maioria das pessoas já esteve várias vezes nas clínicas de reabilitação. Só 10% conseguem largar o vício”.

Dena N., 54, está entre esses felizardos. Aos 14 anos, foi atropelada por uma caminhão, quebrou o tornozelo, começou a tomar Tylex e gostou. Ela já tinha experimentado vários drogas antes. Aos 16, saiu de casa e começou a injetar Dilaudid (hidromorfona), um analgésico opioide para câncer. Daí para a heroína foi um pulo.

Mas Dena pegou hepatite C e resolveu voltar para os remédios, porque aí não precisava usar agulha. Gastava US$ 100 por dia com percocet, vicodin e oxycontin. Usava cinco cartões de créditos, seu salário e o do namorado.

Resolveu sair dessa. Teve uma filha, que hoje tem 9 anos. O pai da menina morreu de overdose quando ela tinha 4.

“Um dos meus maiores medos é eu me machucar e o médico receitar Percocet”, cntou à Folha Dena, que tem olhos azuis e uma cara cansada. “Um tempo atrás eu fraturei o punho, queriam me dar opioides, tomei motrin (ibuprofeno).”

Hickton defende fortes restrições na produção de opiáceos. “Há um excesso de oferta desses remédios”, diz. “Acredito que vamos conseguir; saímos do homem de Marlboro e fumo dentro do avião para uma situação em que o cigarro é restrito em todo lugar, o mesmo pode acontecer com os opiáceos.”

FALTA DE ESPERANÇA

O problema é mais grave no nordeste dos EUA, em Estados como Nova Jersey, Nova York e New Hampshire, e no Cinturão da Ferrugem, área industrial em decadência econômica que abrange partes da Pensilvânia, Ohio, Virgínia Ocidental e Michigan.

Nessa região, muitas fábricas e siderúgicas fecharam as portas nas últimas décadas, levando a desindustrialização e consequente crise econômica. Em alguns desses locais também se usa a droga “chrystal meth”.

“A maioria dos usuários é branco, de classe média, e vem de áreas do subúrbio ou rurais, em decadência. Eles veem que seus filhos terão uma condição pior do que eles tiveram, e eles têm uma vida mais dura do que seus pais tiveram. Isso gera um desespero existencial, uma frustração”, diz Ethan Nadelmann, diretor-executivo da Aliança para a Política de Drogas. “Essas áreas coincidem com as regiões de maior apoio ao candidato Donald Trump.”

São áreas como a cidade de Munhall, Pensilvânia, onde Jessica e seu marido moravam antes de se mudar para McKeesport. Eles viviam na mesma rua que sua mãe e irmã. Parece mais uma rua pacata de subúrbio de classe média –bandeiras dos Estados Unidos e cadeiras na frente das casas, decorações de Halloween.

Mas a menos de 50 metros da casa da mãe de Jessica, a polícia apreendeu 96 pacotes de heroína em latas de batata Pringles e dois fuzis pouco tempo atrás. Na outra esquina, um homem morreu assassinado a tiros há dois meses.

Para olhos treinados, é possível notar a movimentação. “Os traficantes chegam de carro, encostam e fazem ‘o aperto de mão’ especial, quando passam a droga para o comprador”, descreve a irmã de Jessica, Courtney, 23.

A cidade onde Jessica morreu, McKeesport, é um retrato ainda mais fiel desse declínio econômico. A cidade chegou a ter 55 mil habitantes em 1940, mas hoje tem 19 mil.

Desde que uma grande fabrica de tubos fechou, McKeesport nunca mais se recuperou. Os sinais de decadência estão por todos os lados: inúmeras placas oferecendo suboxone (remédio usado no tratamento de dependentes de heroína), quase 1.000 casas abandonadas, lugares para descontar cheques ou alugar móveis, filas de sopa.

A dois quarteirões de onde Jessica e seu marido morreram fica a igreja de St Stephens, abandonada, com as janelas quebradas e a fachada pixada com um “666”.

FAMÍLIAS

“Falam que a Jessica era uma má mãe, uma drogada, mas a verdade é que ela simplesmente fez escolhas erradas”, diz Courtney, irmã de Jessica.

No começo do ano, os serviços de assistência social levaram os filhos de Jessica para morar com a avó e a tia. “Jaxson, aos 4 anos, ainda usava fraldas e mal conseguia falar. Damon, aos 3, parecia um macaco, andava de quatro e só grunhia.”

Logo depois, Jessica recuperou a guarda dos filhos e a família se mudou para McKeesport. Foi a última vez que Courtney viu a irmã.

“Não pudemos vê-la uma última vez para dizer adeus. Exigiram que o caixão fosse fechado, porque o corpo estava em decomposição”. As quatro crianças estão sob a guarda de assistentes sociais.

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