por Drauzio Varella
Por 6 milhões de anos, a humanidade passou fome. No tempo das cavernas, nossos antepassados disputavam carcaças de animais com urubus e hienas.
Moldado na penúria, nosso cérebro desenvolveu redes de neurônios que estimulam a fome e fecham os olhos para a saciedade até passarmos mal de tanto comer. Essencial para a sobrevivência da espécie, esse mecanismo chegou intato até nós.
Então veio a segunda metade do século 20, em que novas tecnologias de produção agrícola, de armazenagem e preservação permitiram oferecer alimentos de boa qualidade a grandes massas populacionais. A dieta da classe média de hoje é mais nutritiva do que a dos nobres de antigamente.
Um cérebro engendrado para enfrentar epidemias de fome não estava preparado para o convívio com a fartura. A capacidade do organismo de transformar em gordura qualquer caloria em excesso, essencial para a sobrevivência em época de vacas magras, voltou-se contra nós.
Para avaliar os riscos do acúmulo excessivo de tecido adiposo, foi criado o índice de massa corpórea (IMC), calculado a partir da relação entre o peso e o quadrado da altura (IMC = Peso/altura x altura).As consequências foram desastrosas: 52% dos brasileiros estão na faixa de excesso de peso ou obesidade, número que ultrapassa 70% nos Estados Unidos e no México. A obesidade se tornou epidêmica na América Latina, Europa, Austrália, nos países árabes e até na China.
Valores para o IMC abaixo de 18,5 caracterizam subnutrição; entre 18,5 e 24,9 está o peso saudável; de 25 a 29,9, o excesso de peso; e acima de 30, a obesidade.
Embora útil, o IMC não leva em conta a constituição física: um homem de 1,80 m, musculoso, com ossatura robusta, não pode ter o peso de um longilíneo da mesma altura. Da mesma forma, não permite distinguir aqueles com distribuição uniforme de tecido gorduroso dos que o acumulam no abdômen.
A relação entre massa corpórea e mortalidade não é linear, entretanto. Naqueles com IMC acima de 30 e nos que caem na faixa da subnutrição, a mortalidade é mais alta, constatação conhecida como “paradoxo da obesidade”. Essas análises, no entanto, são influenciadas por cigarro, doenças pré-existentes, sedentarismo, emagrecimento ou curto período de observação.
Vários estudos mostraram que o acúmulo de gordura na cintura (corpo em forma de maçã) aumenta o risco de doença cardiovascular, porque está associado a depósitos de tecido adiposo entre as vísceras abdominais, distribuição não encontrada nos casos em que a gordura está localizada preferencialmente nas cadeiras (em forma de pera).
Em 2014, epidemiologistas da Mayo Clinic, nos Estados Unidos, fizeram a análise conjunta (metanálise) de 11 estudos que incluíram 650.386 mulheres e homens, acompanhados por um período de até 21 anos.
Ajustados pelas características demográficas, níveis de atividade física e IMC, os resultados mostraram que, nos homens com circunferências abdominais maiores que 110 cm, a mortalidade geral foi 52% mais alta do que naqueles com circunferências menores que 90 cm.
Nas mulheres com circunferências superiores a 95 cm, a mortalidade foi 80% maior do que naquelas com medidas inferiores a 70 cm.
Esses números se mantiveram em todas as faixas de IMC. Nos homens, para cada 5 cm a mais na circunferência abdominal, houve aumento de 7% no risco de morte; nas mulheres, esse aumento atingiu 9%.
Em outro estudo que envolveu um banco de dados com 15.547 participantes com doença cardiovascular, em três continentes, foi avaliada a relação entre as medidas da circunferência abdominal e da circunferência da bacia.
Pessoas com IMC na faixa da normalidade, mas com obesidade central, tiveram os piores índices de sobrevida. Por exemplo, as participantes com IMC = 22 e relação diâmetro da cintura/diâmetro da bacia igual ou superior a 0,98 tiveram mortalidade mais alta do que aquelas com o mesmo IMC nas quais a relação foi igual ou menor do que 0,89. O mesmo aconteceu em outras faixas de massa corpórea.
Conclusão: estar acima do peso ou cair na faixa da obesidade pelos critérios do IMC não leva a aumento da mortalidade, desde que o tecido gorduroso não esteja concentrado na cintura.
*Publicado na Folha de S.Paulo