17:15Jornalista? Que bicho é esse?

por Dirceu Pio

        Foi no finalzinho de dezembro de 1992, há 23 anos, portanto, que eu vi pela televisão as cenas da novela ”De corpo e alma”, na TV Globo, em que o ator Guilherme de Pádua, interpretando o papel do jovem Bira, rompia o namoro com Yasmin, personagem de Daniella Perez. Foram cenas de tanto realismo que eu comentei, em família: de duas uma, esse rapaz ou é o melhor ator do Brasil ou é psicopata!
        Menos de uma semana depois,  surge a notícia estarrecedora: o ator Guilherme de Pádua assassinara a atriz Daniella Perez a tesouradas, na vida real.
        Cheguei a ficar preocupado comigo mesmo: será que eu tinha o poder de adivinhar o futuro? Refleti sobre isso e não demorei a concluir: eu não tinha nenhum poder sobrenatural, a não ser a capacidade de todo jornalista de interpretar rapidamente a índole das pessoas com as quais nos relacionamos ou temos condições de observar em algum ato, discurso ou ação.
        A prática ensina o médico a realizar cirurgias cada vez melhores e mais eficazes; a prática ensina o agrônomo a diagnosticar, cada vez com maior exatidão, qual a doença que ataca uma árvore ou uma plantação e a prática ensina o jornalista a perceber comportamentos capazes de revelar,  muitas vezes com sutileza, índole, caráter, agressividade ou  má intenção.
        Não é apenas isso: a prática – esse constante entrevistar, apurar, checar, destilar, preparar textos e notícias – faz do jornalista um ser que pode ter um monte de defeito, menos o daquelas pessoas que compram gato por lebre. O jornalista nunca vota errado, a menos que queira,  seja estúpido ou tenha algum interesse escuso.

LONGO TEMPO DE JANELA

        Tenho 45 anos de jornalismo diário nas costas. Isto corresponde a dizer que passei a minha vida a entrevistar pessoas – 10, 12 ou mais por dia – sempre em busca do contraditório, do “outro lado da informação”; e fui na maior parte desse tempo repórter da Geral, ou seja, um profissional que não cobria um assunto específico, mas se envolvia com a cobertura de todos eles – polícia, saúde, política, energia, transporte, urbanismo, esporte, pequena empresa, tecnologia, etc. etc. etc.
        Acompanhei a construção de Itaipu do começo ao fim (75 a 82); cobri as duas enchentes arrasadoras de Santa Catarina (83 e 85); viajei de carro mais de 15 mil quilômetros para tentar encontrar o boi gordo que desaparecera dos açougues em 1986; cobri a extinção do BNH em 1971 e fiz inúmeras reportagens sobre a máfia das intervenções extrajudiciais…Viajei no trem da fome de Ponta Grossa (PR) a Ourinhos (SP), assisti impotente ao desaparecimento de 7 Quedas (1982). O que mais?
        Sei dizer, portanto,  quando uma notícia que vejo na TV foi bem ou mal apurada, se é falsa ou verdadeira, se é coerente ou pouco razoável, etc. etc.
        Lembro-me do caso do Amarildo de Souza, servente de pedreiro assassinado com extrema crueldade na Favela da Rocinha, no RJ, em julho de 2013; a polícia tentou vender a ocorrência  como crime em família. Percebi de bate-pronto tratar-se de fraude.
        Demorou algum tempo, mas a farsa foi descoberta: a justiça condenou 12 de 25 policiais militares indiciados pelos crimes de tortura seguida de assassinato, ocultação de cadáver e fraude processual.

CASO ISABELLA NARDONI

        Essa perspicácia, ou, digamos, “esse faro jornalístico”, me leva, por exemplo,  a duvidar das versões dadas pela polícia para o assassinato da pequena Isabella Nardoni, menina de 5 anos de idade, atirada pela janela do sexto andar de um prédio, em São Paulo, depois de sofrer alguma violência, em março de 2008. Seus pais, a madrasta Anna Carolina e  o pai Alexandre Nardoni, estão presos condenados que foram pelo crime.
        Para mim, como jornalista experimentado, o crime ainda guarda muitos mistérios que, provavelmente, jamais serão esclarecidos. Por exemplo: o policial que primeiro chegou ao local onde o corpo da menina foi encontrado, suicidou-se alguns meses depois. Seu nome apareceu na lista de pessoas envolvidas numa rede internacional de pedofilia. O pai da menina chegou ao local onde sua filha jazia aos gritos de “tem um homem no apartamento, tem um homem lá em cima…”
        Como nunca me envolvi na apuração do caso da menina Nardoni, não posso afirmar que o suicídio seja a chave do crime, mas, pra variar, a imprensa passou batido sobre essa possibilidade.
        Também no caso da menina Nardoni, a imprensa concluiu muito e apurou pouco. Digo “também” porque é raro nos últimos anos que a imprensa tenha esgotado um assunto na mesma intensidade e amplitude  com que fazíamos na minha época de reportagem.
        A cobertura do Caso PC Farias, a cobertura do mensalão, entre muitas outras, importantes, foi incompleta, frágil, negligente.
        Os bons repórteres custam caro e viram apresentadores ou analistas na televisão – William Waack, Miriam Leitão, Carlos Nascimento, Carlos Monforte, Eliane Cantanhede, entre muitos outros – ou migram para sites e blogs que ainda não conseguem pagar por um  jornalismo de qualidade.

“MÍDIA GOLPISTA”

        Lula e Dilma se queixam da “mídia golpista” mas no fundo sabem que se a mídia tivesse o mesmo poder de fogo de outrora teriam sido varridos do poder há muito mais tempo. Repórteres a serviço de um jornal com recursos para bancar apuração, investigação e checagem de informações podem ser armas de defesa dos interesses da sociedade mais poderosas que a Lava Jato; que o diga a redação do Washington Post, responsável pela derrubada de Richard Nixon da presidência dos EUA.
        Esse prólogo serve também para eu dizer que, como jornalista, sei que tudo aquilo que o procurador Deltan Dalagnol disse a respeito de Lula é verdadeiro. É só uma questão de tempo para que todos descubram que é mesmo!
        Tenho informações privilegiadas? Não, nenhuma. A vantagem de um jornalista, além de saber quando Lula mente e quando diz a verdade, é a de juntar pontos e vírgulas, juntar fatos do presente e do passado e depois ligar tudo pelo raciocínio, costurar as informações, formar com elas um só tecido, orgânico, lógico, coerente.
        Ah, se tivesse alguém disposto a apostar…

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