por Ivan Schmidt
“Amigos, as cortes querem escravizar-nos e perseguem-nos. De hoje em diante nossas relações estão quebradas. Nenhum laço nos une mais”.
Era o dia 7 de setembro de 1822, e d. Pedro de Alcântara, o príncipe regente do reino do Brasil, voltava de rápida viagem a Santos onde fora inspecionar as condições dos dispositivos de defesa, mas instado a subir a serra de volta a São Paulo por renitente indisposição intestinal que o obrigava a paradas constantes à beira do caminho.
A visita à província de São Paulo havia começado a 25 de agosto, ficando a princesa Leopoldina e o ministro José Bonifácio, responsáveis pelo governo no Rio de Janeiro, enquanto Pedro era recebido com festas na antiga Piratininga.
Segundo a imprensa da época, primeiro ouviu um Te Deum e só então adentrou o paço, onde teve início a cerimônia do beija-mão. A cidade se iluminou, e no dia seguinte a Câmara foi reunida para apresentar a saudação formal ao filho de d. João VI, e este aproveitou “para mostrar que nem tudo era alegria e brincadeira, como parecia muitas vezes no seu riso largo e fácil”, conforme registrou uma das gazetas de então.
A anotação se referia ao fato de que o príncipe havia recebido “mal encarado” a Miguel de Souza Pinto, intendente de Santos, e ao coronel Francisco Inácio de Souza Queiroz, que “eram os autores da bernarda que vinha justamente liquidar. Negou-lhe a mão, e ordenou que seguissem imediatamente para o Rio”. Bernarda era o nome atribuído ao suposto golpe (vade retro!) liderado pelos dois elementos simpatizantes à continuidade do domínio português em terras brasileiras.
Houve tempo ainda para a lavratura de um decreto expedido pelo príncipe para a realização da escolha do novo governo provisório de São Paulo. O eleito foi Saldanha da Gama com 42 votos (o oponente recebeu apenas 23).
D. Pedro passou mais alguns dias em São Paulo, acolhido pelo brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão e pelo coronel Antonio da Silva Prado. Os cronistas não puderam precisar com exatidão a data (se 29 ou 30 de agosto), mas concordam no ocorrido. Seguindo o relato histórico mais tarde conhecido, num daqueles dias “um acontecimento particular perturbaria sua vida e a do país: conheceria uma mulher da mais baixa qualidade moral, irmã do alferes Campo e Melo: d. Domitila de Castro, esposa de Felinto Pinto Coelho, a quem traíra flagrantemente e por quem fora esfaqueada”.
Na ocasião, a mulher passava por grandes dificuldades, respondendo a um processo por adultério. “Procurou o príncipe, sabendo de sua fama de mulherengo, ofereceu-se a ele e conseguiu seduzi-lo. Seria um dos maiores desastres da história do Brasil”, segundo o historiador Pedro Pereira da Silva Costa, autor de uma biografia de Pedro I.
Restabelecida a ordem em São Paulo, o príncipe decidiu pela visita a Santos onde além de vistoriar as fortalezas, planejara fazer uma homenagem à família de José Bonifácio de Andrada e Silva, seu principal ministro e conselheiro. Desceu no dia 5, mas a 7 já estava de volta, atacado por fortíssima disenteria, que segundo registrou um de seus auxiliares, o coronel Manoel Marcondes de Oliveira, o obrigava “a parar a toda hora para prover-se”.
O oficial, ciente de seu depoimento para a história, optou pela expressão castiça “prover-se”, ao se referir ao fato assaz deprimente de que, a espaços curtos, sua alteza imperial era compelida a apear da montaria para se embrenhar no matagal.
Estava a comitiva à beira do riacho Ipiranga, próximo à vila de São Paulo, quando um grupo vinha a seu encontro portando volumosa correspondência da sede imperial, incluindo as famosas cartas de Lisboa, que continham decretos diminuindo ainda mais o poder de d. Pedro sobre o território brasileiro, corroborando insinuações de que as cortes tencionavam reduzir o Brasil, novamente, à categoria de mera colônia.
D. Leopoldina, em sua carta, advertia o marido sobre “as críticas circunstâncias em que se acha o amado Brasil”, e que só “a sua presença, muita energia e rigor podem salvá-lo da ruína”, ao que Andrada ratificava: “Senhor, o dado está lançado e de Portugal não temos a esperar senão escravidão e horrores. Venha V.A.R. quanto antes e decida-se; porque ir resoluções e medidas de água morna, à vista deste comentário que se não nos poupa, para nada servem, e um momento perdido é uma desgraça”.
Momentos depois, ainda “abotoando-se e compondo a fardeta (pois vinha de quebrar o corpo à margem do riacho Ipiranga, agoniado por uma disenteria com dores, que apanhara em Santos”, conforme o biógrafo já citado, Pedro de Alcântara teria dito algo parecido com “verão agora o quanto vale o rapazinho” (que era como se referiam ao príncipe em Lisboa), arrancou do chapéu o laço azul e branco, símbolo de Portugal. Os militares que o acompanhavam fizeram o mesmo.
A história registra que d. Pedro “montando na sua bela besta baia gateada, de pé nos estribos, voltou-se para trás, chefiando o grupo, e, alto, para que todos o ouvissem: Brasileiros, a nossa divisa de hoje em diante será – Independência ou Morte”!
Faltam exatos quatro anos para que se completem 200 anos desse gesto soberano de libertação, incluindo os quase 70 anos de regime monárquico e a República proclamada em 1889.
É tempo mais que oportuno para esquecermos a letra do “Samba do crioulo doido”, do imortal Stanislaw Ponte Preta, sob pena de termos ainda o genialíssimo jornalista carioca, por muitas décadas, como nosso mais autorizado explicador.
Belo texto, como de costume, grande Ivan. Propício à consagrada data. Quanto ao Lalau, é eterno e estará sempre na moda.