por Ivan Schmidt
Em 1967 o então secretário da Defesa do governo norte-americano, Robert McNamara, determinou a feitura de um estudo que recebeu o título de “História do processo norte-americano para tomada de decisões em política vietnamita”, concluído um ano e meio depois. Os 47 volumes ficaram bem guardados até que em junho de 1971, o New York Times começou a publicar a rumorosa série de matérias conhecidas como “Os Documentos do Pentágono”.
Em 2016, outro ano que não terá fim, o Brasil viveu um episódio político-institucional que movimentou – além da opinião pública – as energias dos Três Poderes que sustentam o edifício ético e moral da República. Talvez algum historiador da política contemporânea venha, a qualquer momento, se referir à ocorrência ultimada com o afastamento definitivo de Dilma Rousseff da presidência, embora com direitos políticos mantidos, com o não menos sugestivo título “Os Pedais do Alvorada”.
Na verdade, o episódio deu lugar a um oceano de ditas e contraditas no âmbito do Congresso Nacional, na academia e na imprensa, bem como no dia a dia dos brasileiros com acesso às redes sociais imersos inevitavelmente num debate que, ao fim e ao cabo, produziu mais calor que luz. Mas, que felizmente terminou com a cassação do mandato da então presidente, posto que sua defesa tenha adiantado a intenção de prosseguir o embate jurídico no Supremo Tribunal Federal (STF).
Como cidadã, Dilma teve preservados os direitos políticos com a rejeição da cláusula da “inabilitação” para o exercício de cargos públicos por oito anos, que precisava do mínimo de 54 votos para ser aprovada, mas não obteve o índice.
Foi patético o esforço de um senador ao encaminhar a votação contrária ao item específico, ao sofismar que a ampliação do castigo seria totalmente imerecido, porquanto caso consumado Dilma sequer poderia ser nomeada para lecionar numa faculdade pública, por exemplo. O nobre parlamentar tem toda a razão, pois esta mácula na história do Brasil haverá de suplantar em relevância a deglutição do bispo Sardinha.
A referência inicial ao episódio dos papeis do Pentágono, no final dos anos 60, foi sacada da leitura do ensaio “A mentira na política”, escrito pela filósofa Hannah Arendt (que tem cadeira cativa nesse espaço), e parte integrante do livro Crises da República (Perspectiva, SP, 2015), um de seus melhores livros e já em terceira edição, o que é um feito marcante na área das ciências humanas.
Não tenho a pretensão de estabelecer qualquer nexo causal entre a revelação bombástica dos segredos da ação militar dos Estados Unidos no sudeste asiático e as pedaladas da ex-presidente, mesmo com a absoluta convicção de que algumas observações da pensadora israelita nascida na Alemanha e refugiada nos Estados Unidos, onde viveu e trabalhou por muitos anos, caibam perfeitamente numa análise desapaixonada do imbróglio finalmente resolvido (ou não?) com o afastamento de Dilma da presidência.
É preciso lembrar que a argumentação de Hannah, no caso específico, está construída exatamente à luz do uso da mentira na política, com a ressalva de que “somos livres para reformar o mundo e começar algo novo sobre ele. Sem a liberdade mental de negar ou afirmar a existência, de dizer sim ou não – não apenas a afirmações ou proposições para expressar concordância ou discordância, mas para as coisas como se apresentam, além da concordância ou discordância, aos nossos órgãos de percepção e conhecimento – nenhuma ação seria possível, e ação é exatamente a substância de que é feita a política”.
A pensadora nos assegura que “a veracidade dos fatos nunca é forçosamente verdadeira”, arrazoando que os “historiadores sabem como é vulnerável a textura dos fatos na qual passamos nossa vida cotidiana: está sempre em perigo de ser perfurada por mentiras comuns, ou ser estraçalhada pela mentira organizada por grupos, classes ou nações, ser negada ou distorcida, muitas vezes encoberta cuidadosamente por camadas de falsidade, ou ser simplesmente deixada cair no esquecimento”.
Sobre a “arte de mentir” propriamente dita, a pensadora cita “a variedade aparentemente inócua dos encarregados das relações públicas do governo, que aprenderam seu ofício na inventividade da Madison Avenue”, referindo-se à avenida de Chicago caracterizada pela concentração das mais importantes agências de publicidade e relações públicas do mercado norte-americano.
“A única limitação àquilo que o relações públicas faz aparece quando ele descobre que as mesmas pessoas que podem talvez ser ‘manipuladas’ para comprar um certo tipo de sabão não podem ser manipuladas – embora possam, é claro, ser forçadas pelo terror – para ‘comprar’ opiniões e pareceres políticos”.
A assertiva é adaptável à realidade brasileira das últimas décadas, quando candidatos a cargos majoritários passaram a contar com serviços especializados (e bota especializado nisso!), com a finalidade de embair a opinião dos incautos para facilitar a seus contratantes a conquista do poder.
Getúlio Vargas contou com a colaboração do escritor Lourival Fontes, chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Juscelino buscou o concurso dos escritores mineiros Abgar Renault e Autran Dourado, que escreviam seus discursos e mesmo Fernando Collor teve na pessoa do grande crítico literário José Guilherme Merquior, um de seus mentores intelectuais.
Mais recentemente entraram em campo os marqueteiros e esses passaram a preencher e dominar o espaço antes ocupado por profissionais treinados em relações públicas. Entre nós, o exemplo mais eloquente dessa “inovação” está na dupla de publicitários baianos – Duda Mendonça e João Santana – condutores das campanhas de Lula e Dilma, cujos ganhos astronômicos chegavam ao limite do paroxismo e, exatamente por isso, passaram a demandar quantias cada vez maiores do caixa das empresas dirigidas pelos maganos com passe livre nos palácios governamentais.
Contudo, Hannah alerta para a constatação de que o embuste “não entra em conflito com a razão, pois as coisas poderiam ser como o mentiroso diz que são”, esclarecendo que “mentiras são frequentemente muito mais plausíveis, mais clamantes à razão do que a realidade, uma vez que o mentiroso tem a grande vantagem de saber de antemão o que a plateia deseja ou espera ouvir. Ele prepara sua história com muito cuidado para consumo público, de modo a torná-la crível, já que a realidade tem o desconcertante hábito de nos defrontar com o inesperado para o qual não estamos preparados”.
É reconfortante saber que o mentiroso “é derrotado pela realidade, para a qual não há substituto”. Na filosofia política de Hannah Arendt “por maior que seja a rede de falsidade que um experimentado mentiroso tenha a oferecer, ela nunca será suficientemente grande para cobrir toda a imensidão dos fatos”, concluindo que “esta é uma das lições que podiam ter sido aprendidas das experiências totalitárias e da assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira – na capacidade de, por exemplo, reescreverem a história uma e outra vez para adaptar o passado à ‘linha política’ do momento presente, ou de eliminarem dados que não se ajustam às suas ideologias. Desta forma, numa economia socialista, eles negariam a existência de desemprego, tornando-se o desempregado simplesmente uma não-pessoa”.
A tentativa de reescrever a história no Brasil infelicitado pelos atropelos político-administrativos dos últimos anos será identificada doravante pela introdução de “narrativas”, sobre as quais se procura sustentar um edifício em ruínas. E no lugar das expressões “experiências totalitárias ou economias socialistas” utilizadas pela filósofa, bem que se poderia invocar essa excrescência política que atende pelo nome de “bolivarianismo”.
Para concluir, um pouco mais da clarividência filosófica e política desta que foi uma das mais insignes pensadoras do século passado: “Se os mistérios do governo obscureceram a tal ponto as mentes dos protagonistas que eles já não conhecem ou não mais se lembram da verdade por detrás de seus segredos e mentiras, toda a operação de embuste por mais sofisticadas que sejam suas caríssimas maquinações – cairá por terra ou tornar-se-á contraproducente, isto é, confundirá o povo sem convencê-lo”.
“O problema com a mentira e o engodo”, detona Hannah Arendt, “é que só são eficientes se o mentiroso e o impostor têm uma clara ideia da verdade que estão tentando esconder. Neste sentido, a verdade mesmo que não prevaleça em público, possui uma primazia inerradicável sobre qualquer falsidade”.