por Ivan Schmidt
A leitura da História é sempre um exercício proveitoso tanto para aqueles que o fazem pelo interesse da pesquisa profissional quanto pelos diletantes em busca de informações sobre temas de interesse pessoal, como é o meu caso.
No atual momento brasileiro essa tarefa tem sido facilitada pela leitura dos livros e ensaios de historiadores ou historiógrafos do calibre de Boris Fausto, Jorge Caldeira, Evaldo Cabral de Mello, José Murilo de Carvalho, Marco Antonio Villa, Lilia Moritz Schwarcz e Mary Del Priore, dentre tantos outros pesquisadores da nossa história desde a época do descobrimento.
Um desses autores é Carlos Guilherme Mota, graduado pela USP da qual é professor emérito e titular aposentado da cadeira de história contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), professor de história da cultura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade Mackenzie (SP) e fundador do Instituto de Estudos Avançados da USP e, ainda, professor visitante das universidades de Londres, Texas, Salamanca e Stanford.
A obra do advogado gaúcho Raymundo Faoro – Os donos do poder – chamou sua atenção desde os tempos de estudante secundário (como deve ter acontecido com centenas de outros), coincidindo com o fato relevante de que o autor do livro lançado originalmente em 1958 pela Editora Globo, de Porto Alegre, com o título sugerido pelo então editor Erico Veríssimo, foi um dos participantes da banca de livre-docência em 1975 que arguiu a tese denominada “Ideologia da cultura brasileira”, apresentada pelo próprio Carlos Guilherme Mota.
O livro de Faoro, que sem possuir título de doutor escreveria um dos mais credenciados clássicos da inteligência brasileira, para o historiador, foi decisivo no esforço da compreensão dos rumos do país, algo que já naquela época o amargurava demais. “Na verdade, àquela época poucas pessoas haviam lido Faoro para valer. Florestan Fernandes, uma referência em minha caminhada, já citava sua obra quando falava de uma sociedade de estamentos, classes e castas, e mencionava ‘os donos do poder’, assim entre aspas. Era obviamente uma apropriação do conceito de Faoro, que ele respeitava muito”, escreveu Mota.
Houve uma segunda edição do livro (1975) com o dobro de páginas da primeira, ajudando Mota a lembrar que “dos intérpretes do Brasil, o que líamos naqueles anos eram o Nelson Werneck Sodré, Sergio Buarque de Holanda, Celso Furtado, Caio Prado Junior, o próprio Florestan”, comentando que “quanto ao Faoro, sabia-se vagamente de sua existência física, um gaúcho de Vacaria que havia publicado aquele livro pela tradicional Editora Globo de Porto Alegre, por onde andava o Erico Veríssimo”.
A atenção do jovem estudante foi amplificada pela conclusão do livro que se propunha a “examinar seis séculos de história do estamento burocrático, com todo aquele aparato jurídico-político de Portugal transplantado para o Brasil”, e que “terminava com uma frase tremenda, que punha em xeque a própria ideia de cultura brasileira. E era isso que eu andava pesquisando, anos depois, já no Departamento de História da USP, sob a ditadura”.
A última frase do livro de Faoro, cujo impacto foi imediatamente percebido por Carlos Guilherme Mota é a seguinte: “A principal consequência cultural do prolongado domínio do patronato do estamento burocrático é a frustração do aparecimento da genuína cultura brasileira”.
O historiador revela que o trabalho de Raymundo Faoro passou a fornecer elementos para uma reflexão sobre “o Estado patrimonialista brasileiro e seus mecanismos de cooptação, conciliação, debilidade político-ideológica dos partidos e, como resultado, a corrupção como modo de vida”. E mais: “Com o conceito de estamento, onde se processa essa mistura do público e do privado, tipificador do coronelismo e do neocoronelismo atual, Faoro jogava novas luzes, oferecendo um outro instrumento para entendermos a cultura política do universo patrimonialista, em vigência até hoje. Mais ainda, oferecia ao leitor uma análise de nossa História vista na longa duração, com enorme fôlego, na perspectiva histórica de seis séculos”.
Alheio aos debates e futricas dos quadros universitários, que Mota identifica como “departamentais”, Faoro forneceu a chave para uma reinterpretação da história social e das mentalidades no Brasil, “a partir desses conceitos de patrimonialismo, de estamentos, classes, castas e ideologias (todos juntos)”, acrescentou Mota. Isto ajudou, a seu juízo, os estudiosos de História “a entender a pirâmide social em situação colonial, em que as lutas de classes teriam ocorrido de modo tão simples, o senhor do engenho contra o escravo, a ‘classe’ dos senhores contra a ‘classe’ dos escravos, e assim por diante”.
Carlos Guilherme, no entanto, discorda desse conceito e assegura que “Faoro nos mostrava era a força, os valores e as formas de dominação senhorial, ainda hoje presentes na visão a partir da varanda de certos cientistas sociais, juristas, economistas e cientistas políticos, e a triste existência de castas lá embaixo, aprisionadas em quadros mentais coloniais de longa duração. Ajudava-nos a enxergar remanescências disso tudo, as heranças colonial e bragantina, visíveis até hoje nas relações entre patrões e empregados. Em suma, esclarecia a razão da fragilidade das relações contratuais de trabalho no Brasil, a ausência de sentimento de cidadania efetiva, o racismo, o classismo e o estamentalismo rançoso que vem até os dias atuais”.
Ninguém estranhe a pouca familiaridade com o termo “estamento”, palavra desconhecida e raramente usada na conversação diária (a primeira vez que a ouvi foi na época em que Golberi era chefe da Casa Civil de Geisel e dado a arroubos intelectuais). Ela foi introduzida no debate filosófico da política por intermédio de Max Weber, mas os leitores de Marx descobriram que ele já a teria usado (stände), assim como classe (klassen), ou seja, estamento e classe.
O historiador acrescenta que Marx “observando a formação do capitalismo na Alemanha, falava até de uma transição, em que coexistiam os estamentos pretéritos e as classes futuras”. Sem absoluta certeza, Mota admitiu que “se não me engano isso está na Ideologia alemã, como quem diz ‘aqui existe uma sociedade oligárquica antiga’, que eram os estamentos do passado, as famílias tradicionais, os proprietários rurais ainda marcados pelo feudalismo, mas também uma nova classe emergente”.
Mota esclarece esse pressuposto ao afirmar que Raymundo Faoro jogou uma forte luz sobre o processo de transição para a sociedade capitalista moderna, que “é bastante difícil, lenta e incompleta na história do Brasil”, o que em parte explica “o presente miserável em que vivemos”. Em resumo, o jurista “foi buscar o problema nas raízes, em Portugal, e mostrou a assustadora persistência cultural do domínio do patronato que explica essa frustração do aparecimento da genuína cultura brasileira”.
A história das oligarquias, diz Mota, não parou em 1930 “como pensávamos”, mas continua: “Para nós era esse o problema, porque estudávamos o fim da Primeira República como se fosse o fim das oligarquias. E a chamada Revolução de 30 não deu cabo delas, quando muito as abalou um pouco. Aplicávamos modelos errados e nem percebemos logo o que ocorreu em 1930 ou 1964. Na verdade foram rearranjos de oligarquias com o capital nacional e internacional, como hoje se sabe, estão aí Sarney, ACM e tantos outros como documentos vivos”. Em tempo, as considerações de Mota foram publicadas antes da morte daquele que o jornalismo político apelidara de vice-rei da Bahia.
O longevo maranhense ainda está por aí e segundo hábeis investigadores das patranhas políticas, prossegue lampeiro distribuindo as cartas e falando pela boca do senador alagoano Renan Calheiros, presidente do Senado.
É por essas e outras que se conclui, seguindo os seguros critérios do historiador Carlos Guilherme Mota, que “o estamento se atualiza e perpetua sempre em outro tipo social, capaz de absorver novas técnicas, criando novos mecanismos de apropriação, e até vocabulário aparentemente novo, em nome da ‘flexibilização’, da ‘globalização’ e assim por diante”.
E, sábio por excelência “cria todos os contra-argumentos para nutrir a contrarrevolução, evitando o perigo de uma ruptura político-institucional, econômica ou social”. Enfim, somos todos filhos do estamento.