por Vladimir Safatle
Em 1956, quando surgiu o primeiro antidepressivo, o laboratório Geigy hesitou em lançá-lo no mercado por considerar a depressão um fenômeno de proporções insignificantes. Hoje, 60 anos depois, a Organização Mundial da Saúde estima que entre 350 e 400 milhões de pessoas sofram de alguma forma de depressão. Isso representa algo em torno de 5% da população mundial. No Brasil, os números são mais substantivos. Segundo o IBGE, 7,6% da nossa população foi diagnosticada com depressão. Ainda segundo estudos da Fiocruz, 1 em cada 4 mulheres sofre de depressão pós-parto, número maior do que a média global.
Diante de números dessa magnitude há de se perguntar o que realmente ocorreu nos últimos 60 anos. Estamos no meio de algo como uma verdadeira epidemia mundial de depressão que fez números insignificantes saltarem a proporções massivas. Ou, na verdade, essas pessoas já estavam lá, mas não eram vistas, não eram diagnosticadas de forma correta?
Acreditar nessa marcha irresistível da ciência é reconfortante para alguns. Mas será que esse raciocínio vale realmente para categorias clínicas, como a depressão, ou, por exemplo, o transtorno de personalidade histriônica e o transtorno bipolar? É possível dizer, ao contrário, que nossas categorias clínicas ligadas à descrição do sofrimento psíquico, em larga medida, produzem os objetos que elas descrevem?Uma certa ideia de desenvolvimento científico gostaria de nos fazer acreditar na segunda hipótese. Pois se trata de defender que a ciência caminharia a passos largos por meio de uma correspondência cada vez maior ao mundo tal como ele é, independentemente de nossa forma de descrevê-lo. Como se nossa linguagem científica fosse um espelho que aos poucos poderia ser polido, limpado de suas crenças e superstições a fim de alcançar uma translucidez crescente. Pois o desenvolvimento de nossas categorias científicas seria baseado em refutação e descoberta. Refuta-se uma descrição errada, que não corresponde a nada no real, e descobre-se uma “espécie natural”, ou seja, um conjunto de fenômenos cuja identidade é dada pelo mundo, não por nós.
Pois notemos uma diferença importante entre categorias utilizadas para descrever comportamentos humanos e aquelas utilizadas para descrever fenômenos do mundo físico. Quando descrevemos fenômenos físicos, os objetos envolvidos não apreendem reflexivamente as descrições que deles fazemos. Ao descrever a lei da gravidade, temos poucas chances de uma pedra dizer para si mesma: “Então, é por isso que sempre caio. Hum, interessante”.
No entanto, é isso o que acontece quando um paciente se vê como depressivo. Ele apreenderá reflexivamente a categoria que o descreve, ele dirá a si mesmo, “então sou um depressivo”, e essa nomeação de si não será indiferente. Ela produzirá novos efeitos e reorientará os efeitos passados, repetindo um fenômeno que teóricos da ciência, como Ian Hacking, chamam de “nominalismo dinâmico”. Pois uma doença psíquica não é apenas uma descrição de fenômenos físicos agenciados em conjunto: ela é uma identidade, uma identificação, e esquecemos disso muitas vezes. Da mesma maneira como alguém muda seu comportamento e sua maneira de estar no mundo quando assume para si mesmo, por exemplo, “eu sou negro, eu sou escocês, eu sou judeu etc.”, ela mudará quando se ver como depressivo.
Nesse sentido, talvez possamos dizer que o fato de, ao menos segundo o saber psiquiátrico reinante, não haver mais histéricas, neuróticos e paranoicos entre nós (pois todas essas categorias clínicas foram abandonadas nos últimos anos) não significa que o sofrimento que elas nomeavam desapareceram. Significa apenas que eles são narrados de outra forma. A boa questão é, pois: por que, a partir de certo momento, eles serão narrados de outra forma? Por que, a partir de certo momento, preferimos narrar nosso sofrimento como “depressão”?
Não haveria questões exteriores à clínica e próprias ao campo alargado da cultura que nos levaram a preferir certas narrativas a despeito de outras? Isso nos obrigaria a perguntar não apenas sobre descrições, mas sobre valores, ou seja, sobre se nossa ideia de normalidade e saúde não seria portadora de valores que mudam historicamente a partir de dinâmicas que não são apenas ligadas ao universo dos laboratórios e dos hospitais. Mas isso exigiria uma visão do saber médico-psiquiátrico que nos parece atualmente proibida.
*Publicado na Folha de S.Paulo