por Célio Heitor Guimarães
O amável leitor não sabe o que eu estou relendo atualmente. Se soubesse, certamente riria. E como o seu sorriso me trará alegria, conto logo: Monteiro Lobato. Sim, é o velho e quase esquecido José Renato Monteiro Lobato, o Juca, paulista de Taubaté, que me tem ocupado o tempo, renovando antigos momentos de puro prazer.
Devo revelar que, como a escritora Ruth Rocha – que assina a apresentação da nova edição de “Reinações de Narizinho”, sob o selo Globinho, da Editora Globo – que só me tornei leitor e tomei o gosto pelas letrinhas porque li Monteiro Lobato. E o primeiro livro foi exatamente “Reinações de Narizinho”. Nele descobri a magia do Sítio do Picapau Amarelo, de Dona Benta e Tia Nastácia, Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde de Sabugosa, Marquês do Rabicó e de toda a turminha. E um novo mundo abriu-se à minha frente. Tudo se transformou, a imaginação foi libertada e os sonhos começaram a surgir.
Já disse, em capítulo anterior, que aprendi a ler nos jornais, tentando entender os anúncios dos cinemas. Mas a leitura propriamente dita começou com Lobato. Diria até, sem medo de tornar-me piegas, que foi através da leitura de Lobato que descobri a magia dos livros, a música das palavras, o encanto dos textos. E deles nunca mais me arredei.
Grande Lobato! Promotor de Justiça, fazendeiro, escritor, editor, empresário, tradutor, jornalista e, sobretudo, polemista militante. Perdeu o pai e a mãe muito cedo e foi criado pelo avô. Tentou ser fazendeiro, mas logo percebeu que não dava para aquilo. Estudou Direito e formou-se advogado, mas o seu grande interesse sempre foi a literatura. Escrever era tudo o que queria. Mas incomodava-o as poucas livrarias existentes no Brasil. Então, virou editor. E enviou aos comerciantes da época uma carta com uma indagação inusitada: “Quer vender uma coisa chamada livro?”. Surpreendentemente, muitos toparam. E os quarenta pontos de venda existentes viraram mil e duzentos, fossem eles livrarias ou açougues…
Na infância, eu pouco ouvira falar de Monteiro Lobato. Quando muito, aliava o seu nome à história de Jeca Tatuzinho, reescrita sob os auspícios do Biotônico Fontoura e publicada em almanaque de divulgação farmacêutica. Mas o que me encantava, então, era ver nas ilustrações do texto as galinhas, os patos, os marrecos e todo mundo do galinheiro calçando botinas. Aí, caiu-me nas mãos um exemplar de “Reinações de Narizinho”…
Dia desses, passeando pelas vielas da Livraria Cultura do Shopping Curitiba, abarrotadas da literatura inútil e idiotificante que ora domina o mercado editorial brasileiro – como bem registrou o nosso Ivan Schmidt, aqui mesmo neste espaço – eis que, para minha agradável surpresa, reencontro a menininha de narizinho arrebitado, que morava com a avó e uma empregada da família em um sitiozinho nas proximidades da Mantiqueira, cercado pela Mata Atlântica e por estranhas criaturas. E que, nas férias escolares, recebia a visita do primo Pedrinho.
Comprei o volume para dar à Fernanda, minha neta. Mas foi só folheá-lo para mergulhar de cabeça na releitura. E o estou relendo “à moda bovina”, como ensinava Rubem Alves, isto é, mastigando bem devagar, para aproveitar ao máximo o sabor das palavras e o conteúdo gratificante. Afinal, ingenuidade à parte, acho que continua difícil resistir a uma história que inicia assim:
“Numa casinha branca, lá no Sítio do Picapau Amarelo, mora uma velha de mais de sessenta anos. Chama-se Dona Benta. Quem passa pela estrada e a vê na varanda, de cestinha de costura no colo e óculos de ouro na ponta do nariz, segue seu caminho pensando:
“‘Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto…’.
“Mas engana-se. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em companhia da mais encantadora das netas – Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, ou Narizinho como todos dizem. Narizinho tem sete anos, é morena como jambo, gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns bolinhos de polvilho bem gostosos.
“Na casa ainda existem duas pessoas – Tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo…”
Monteiro Lobato escreveu isso tudo no início dos anos 20 do século passado. Mas o seu texto ainda encanta, é saboroso, mais atual do que nunca e, com toda certeza, faz muita falta às novas gerações.
Não sei se minha neta Fernanda receberá o presente de bom grado. E, se o receber, se tirará proveito dele, pois, desgraçadamente, já é dependente da tecnologia vigente e viciada em whatsapp, iphone, ipad e outras porcarias do gênero. Se reagir, atacarei com o próprio Monteiro Lobato: “Uma casa sem livros é um corpo sem alma”. Ou com o meu Rubem Alves infalível: “Quem ama ler, tem nas mãos as chaves do mundo”.
Saia dessa, Fezinha!
O mesmo ocorreu comigo, Monteiro Lobato e seus personagens me abriram os portões da leitura e da cultura.
Grande Célio Heitor: mais um gol de placa na tua vasta coleção! Teus leitores agradecem!