por Ivan Schmidt
Morreu aos 87 anos no sábado passado (2), em Nova York onde residia, Elie Wiesel, Prêmio Nobel da Paz (1986) e uma das poucas testemunhas ainda vivas do genocídio de milhões de judeus no Holocausto.
Nascido em Sighet (Transilvânia) em 1928, aos 15 anos de idade Elie foi levado pelos nazistas com toda a família para o campo de concentração de Auschwitz, onde morreram sua mãe e as duas irmãs menores, sobrevivendo os dois irmãos mais velhos. Depois, seu pai e ele foram transferidos para Buchenwald e, Shlomo (o pai) morreu pouco antes da libertação em abril de 1945.
Com o término da Segunda Guerra Mundial, Elie foi morar em Paris e começou a trabalhar como jornalista dedicando-se a manter viva a memória do Holocausto, envolvendo-se também em movimentos de defesa dos direitos humanos.
Escreveu dezenas de romances e ensaios, dentre os quais se destaca a trilogia sobre o horror dos campos de concentração, sendo que A noite (1955) teve traduções para todos os idiomas modernos. Organizador da Fundação Elie Wiesel para a Humanidade, sua divisa era “esquecer os mortos é o mesmo que matá-los pela segunda vez”.
O romance traz o relato pungente da angústia sofrida pelos sobreviventes dos campos, descrevendo a vergonha que o autor sentiu ao permanecer em silêncio deitado no catre enquanto o pai era espancado pelos guardas nazistas.
Ao receber o Prêmio Nobel, no discurso de agradecimento, disse com emoção: “Eu me lembro: foi ontem, ou há uma eternidade. Um menino judeu descobriu o Reino da Noite. Lembro seu desconcerto, lembro sua angústia. Foi tudo tão rápido. O gueto. A deportação. O vagão de gado fechado. O altar em chamas onde a história do nosso povo e o futuro da humanidade seriam sacrificados. Lembro que ele perguntou a seu pai: ‘Isso é mesmo verdade? Isso é o século XX, não a Idade Média. Quem consegue autorizar que crimes como estes sejam cometidos? Como pode o mundo permanecer em silêncio?’. E esse menino agora se volta para mim e pergunta: ‘O que você fez com o meu futuro? O que você fez com a sua vida?’ E eu respondo que tentei. Tentei manter a memória viva, tentei lutar contra aqueles que esquecem. Porque, se esquecemos, somos responsáveis, somos cúmplices”.
No final de janeiro do ano passado (dia 27), o jornalista Guillermo Altares escrevia no El País de Madri que no 60º aniversário da libertação de Auschwitz “cerca de 1.500 sobreviventes estavam presentes”, revelando, porém, que “agora, uma década depois, foram apenas 300”. Segundo ele “historiadores calculam que, de 1,3 milhão de pessoas deportadas para lá, em torno de 200 mil sobreviveram à passagem por esse campo de extermínio. Setenta anos depois da entrada das tropas soviéticas no local, a era dos que lá estiveram vai chegando ao fim, pois as testemunhas oculares – tanto as vítimas quanto os carrascos – estão se extinguindo pouco a pouco”.
Lembrava também a “monumental pesquisa” do historiador britânico Laurence Rees, que constatava: “Em pouco tempo, o último sobrevivente e o último criminoso se reunirão àqueles que foram assassinados no campo”. A declaração consta do livro Auschwitz (inédito no Brasil) que serviu de base para um documentário homônimo feito pela BBC.
A conclusão de Rees: “Então não restará ninguém neste mundo que tenha conhecido diretamente o que aconteceu nesse lugar. E existe o perigo de que, quando isso acontecer, a história se misture ao passado distante e se transforme apenas em um acontecimento terrível entre tantos outros”.
Guillermo Altares, contudo, faria a ressalva de que “existem centenas de depoimentos gravados, milhares de livros, museus de um rigor impressionante e fotos horripilantes por sua naturalidade – como a série de judeus húngaros, escolhidos para as câmaras de gás, que esperam sua vez conversando, sentados em um gramado, alheios ao terrível destino que lhes cabe”.
E, além disso, adverte, “resta o próprio campo de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco e que está sendo preparado para uma grande transformação, justamente pelo desaparecimento das testemunhas oculares”.
O jornalista espanhol explicava também que “os responsáveis pela gestão do antigo campo nazista encaram a sua complexa restauração e adaptação do museu para gerações que não viveram a Segunda Guerra Mundial. Também, e não é assunto fútil, para uma Europa que em algum momento julgou ter se livrado da sombra do fascismo e do antissemitismo, quando na verdade está mostrando exatamente o contrário”.
A reportagem mencionava alguns dos escritores judeus mais notáveis na construção de narrativas sobre o Holocausto, entre eles o próprio Elie Wiesel, Primo Levy, Imré Kertész e Odette Elina (desconhecida no Brasil), todos responsáveis pela feitura de obras-primas, citadas por Altares como “um punhado de obras literárias inesquecíveis, testemunhos vivos do horror, que conseguem narrar o inenarrável”. Outro autor do mesmo campo, o norte-americano William Styron que escreveu o romance A escolha de Sofia, um dos romances mais realistas sobre o Holocausto, se referiu a essa obra literária específica como testemunha universal “da noite mais negra da humanidade, quando milhões de pessoas sofriam e morriam sob o terror nazista”.
Na verdade, um sentimento interior inexplicável e ao mesmo tempo incompreensível, como diria a filósofa Hannah Arendt em Origens do totalitarismo (Cia. das Letras, SP, 2012), na hercúlea tarefa de esticar ao longo de mais de 800 páginas um novelo inesgotável de razões históricas, culturais, sociológicas e psicológicas – científicas enfim – capazes de permitir a absorção do real significado da barbárie nazista, se tal fato é possível e aceitável, pelo entendimento de seres civilizados e emocionalmente sadios.
Seguindo uma linha de pensamento que a muitos pode parecer ambígua, Hannah propõe a tese de que nem todos os judeus foram flagrantemente repelidos pela classe média alemã naquele período conturbado da história (1933-1945).
O raciocínio da antiga aluna de Heiddeger, na Universidade de Fraiburgo, tem uma dose impressionante de honestidade intelectual no esforço de radiografar um fenômeno crucial: “É certo que essa psicologia não chega a explicar por que esses ‘admiradores’ dos judeus tornaram-se finalmente seus verdugos, e pode-se mesmo duvidar que estivessem entre os principais dirigentes das fábricas de morte, embora seja espantosa a proporção das chamadas classes educadas entre aqueles que realmente assassinaram os judeus. Mas, explica a incrível deslealdade exatamente daquelas camadas da sociedade que mais intimamente haviam conhecido os judeus, e que mais se haviam deleitado e encantado com seus amigos judeus”, revelou.
Hannah, também de ascendência judaica, ao discursar sobre a política totalitária que se arrogava a missão de dar uma força extra à marcha da natureza, não faria rodeios ao admitir que “se é a lei da natureza eliminar tudo o que é nocivo e indigno de viver, a própria natureza seria eliminada quando não se pudesse encontrar novas categorias nocivas e indignas de viver; se é lei da história que, numa luta de classes, certas classes ‘fenecem’, a própria história humana chegaria ao fim se não se formassem novas classes que, por sua vez, pudessem ‘fenecer’ nas mãos de governantes totalitários. Em outras palavras, a lei de matar, pela qual os movimentos totalitários tomam e exercem o poder, permaneceria como lei do movimento mesmo que conseguissem submeter toda a humanidade ao seu domínio”.
Perto do fim da guerra, Wiesel estava no campo de Buchenwald, em meio a 20 mil outros judeus. No dia 10 de abril de 1945 um movimento de resistência resolveu entrar em ação. “Homens armados surgiram repentinamente de todos os lados”, escreveu ele em A noite (Ediouro, RJ, 2002). “Rajadas de metralhadoras. Explosões de granadas. Nós, as crianças, ficávamos deitadas no chão do bloco. A batalha não durou muito tempo. Perto do meio-dia tudo voltou a calma. Os SS tinham fugido, e os resistentes, assumido a direção do campo. Por volta das seis da tarde, o primeiro tanque americano apresentou-se às portas de Buchenwald”.
Pouco depois da libertação Elie ficou doente e recolhido ao hospital passou duas semanas entre a vida e a morte, resistindo por milagre. Assim concluiu sua obra-prima: “Queria me ver no espelho pendurado na parede em frente. Não via meu rosto desde o gueto. Do fundo do espelho um cadáver me contemplava. Seu olhar nos meus olhos não me deixa mais”.