7:02O que é que ele tem

por Gregório Duvivier

O João era uma criança normal. Pra mim e pras minhas irmãs, não tinha nada de errado com ele, tirando o fato de que ele tomava remédios todo dia e se submetia regularmente a cirurgias que abriam seu crânio. Suas mãos eram diferentes, mas a gente achava que seus dedos todos juntos deviam servir para nadar melhor ou agarrar bolas no futebol. João não tinha olfato, mas isso era uma grande vantagem quando um dos irmãos soltava um pum. Em vários sentidos, João era um super-herói: pulava da cama às seis da manhã pra remar na baía de Guanabara, sabia de cor todas as linhas de ônibus e seus trajetos, comia mais que todos nós juntos –e não engordava. Nunca ouvi, lá em casa, a palavra deficiência. Ouvíamos muito a palavra diferença, foneticamente tão parecida mas semanticamente tão distante.

Foi na rua que percebi que meu irmão era “deficiente”. Achava estranhíssimo quando os outros achavam o João estranhíssimo. Foi só depois de me perguntarem uma dúzia de vezes “o que é que ele tem?” que fui perguntar à minha mãe: “O que é que ele tem?”.

Foi aí que aprendi a expressão Síndrome de Apert, para responder a todos que me perguntavam. E as pessoas então ficavam mais calmas, mesmo sem fazer ideia do que aquilo significava, porque agora tinham um nome. Claro que não bastava. Depois precisava explicar também que não era contagioso, que as outras crianças podiam brincar e abraçar, que elas não precisavam fugir ou se esconder, que o João não mordia. Às vezes, nem assim funcionava. Foi aí que conheci a outrofobia, essa doença tão entranhada e tão difícil de desentranhar.

Essa semana minha mãe lança “O que É que Ele Tem?”, que é a história do João, e que é também a história dela, que teve o João aos 22 anos –e enfrentou as barras mais pesadas antes e depois disso. Mas pode ficar tranquilo: se você acha que vai encontrar no livro lamúrias e autopiedade, você não conhece a minha mãe. Se você quer uma história de superação, desista –porque no começo ela já deixa claro que no fim tudo dá certo. Até porque no começo também dá –quando se começa cercado de amor por todos os lados. Chorava do começo ao fim do livro. Não de tristeza, mas de admiração.

Aprendi com a minha mãe o contrário do que os pais costumam ensinar aos filhos: a apostar no amor em detrimento de qualquer coisa. Não em qualquer amor, mas no amor mais difícil, e no mais raro, que é o amor pela diferença. Não confundir com deficiência.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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