7:34As bolas

por João José Werzbitzki, no blog JJ

Há tempos quero escrever sobre o que considero a publicidade de maior mau gosto da história do Brasil, que é a campanha da Kaiser   –  “escute as suas bolas”, que é o mais nojento exemplo de puro machismo e de ausência de ética e de compostura de uma marca que já vi.

Estranhei não encontrar crítica alguma na mídia especializada (a qual, na verdade, é mais dedicada aos press-releases promocionais das agências e anunciantes do que a críticas que visem a melhoria da nossa comunicação de marketing e mercado).

Cada vez que assisto àqueles comerciais da Kaiser digo que vou escrever a respeito, mas me esqueço. Deve ser fruto da minha idade, pois com certeza não é falta de coragem para apontar o absurdo de um posicionamento profundamente inadequado.

Por muito menos, vemos reclamações no Cenp – ou não?

A campanha da Kaiser é absurda, inclusive para crianças, que vão indagar aos seus pais, tios e avós o que significa consultar suas bolas, ou que significado tem suas bolas (os testítulos) nas suas decisões. Perceberam que o ator principal, aquele que vai escutar as bolas dele, é um frouxo, fraco, tímido e sem coragem de enfrentar a realidade? E que consultando suas bolas vicra macho?

Pior é pensar que alguém que ganha muito dinheiro aprovou esta porcaria de campanha e está pagando uma fortuna por ela, sem que o Cenp, nem as redes de TV, protestem contra o machismo, a falta de ética e o mau gosto, além da desconsideração pela boa educação às nossas crianças e jovens.

No jornal Gazeta do Povo, Fernando Martins escreveu a respeito do assunto, de forma mais do que adequada, tanto que reproduzo abaixo o texto dele.

Boa leitura.

 

NÃO ESCUTE SUAS BOLAS

Para alguns, pode até parecer engraçadinha. Pessoalmente, acho que ela é rasa e de mau gosto. Mas esse não é o ponto ao qual quero chegar. A realidade é que a publicidade cujo slogan é “Escute suas bolas”, de uma marca famosa de cerveja, é muito mais que isso. Trata-se do retrato de um país que incentiva homens a agir de acordo com seus instintos, sem reflexão. No extremo (leiam bem: no extremo!), é esse comportamento que conduz a atos abomináveis como o estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos no Rio de Janeiro.

Há um sério problema em uma nação que não enxerga o risco de tratar de modo natural esse comercial e o comportamento que ele sugere. E o fato da publicidade  ser veiculada há tantos meses é um sintoma disso. Afinal, a mensagem é clara: o homem de verdade é aquele que escuta seus testículos. Que pensa com os genitais.

A publicidade cujo slogan é “Escute suas bolas”, de uma marca de cerveja, é o retrato de um país que incentiva homens a agir de acordo com seus instintos

Não é de hoje que as marcas de cerveja buscam associar o consumo de bebida à masculinidade. E, particularmente, à conquista sexual. O recado: quem bebe se dá bem. Sabe-se que não é exatamente assim. A ingestão abusiva de álcool está fortemente relacionada à violência contra a mulher. Mas tudo isso é naturalizado na tela da televisão…

Há ainda outro pensamento comum entre homens que, também no limite, conduz a abusos contra mulheres: o de que, quando elas dizem “não”, querem na verdade dizer “sim”.

A suposta característica feminina de fingir o querer simulando o não querer (ou de não saber muito bem o que quer, mesmo demonstrando desejo) passou a ser popularmente chamada de histeria. É curioso que mulheres são rotineiramente chamadas de histéricas. Mas pouco se ouve dizer que um homem é histérico.

Por sinal, faz tempo – muito tempo – que é assim que muitos veem as mulheres. Quem cunhou o termo “histérica” e descreveu-a como “perturbada”, no século 5 a.C, foi o grego Hipócrates, considerado o pai da Medicina.

“Hysteria” é “útero”, em grego. De onde veio “hysterikos” (perturbação do útero). Hipócrates acreditava que o fluxo de sangue do útero para a cabeça provocava perturbações no comportamento delas.

Obviamente, é uma conclusão ultrapassada, sem base científica alguma, mas que atravessou os séculos sedimentando um preconceito: mulheres são histéricas; fingem não desejar o que desejam – o que, supostamente, autorizaria o avançar do sinal.

Mas as areias do tempo nunca mudaram o fato de que “não” deve ser interpretado como “não”. E de que um homem que age unicamente movido pela ânsia de saciar suas vontades mais primitivas – ou que escuta suas bolas, como diz a publicidade– não se difere muito de um animal selvagem.

A civilização foi afinal construída sobre bases da racionalidade, e não sobre o solo instável dos instintos. Ser civilizado é, portanto, dizer “não” ao apetite sexual desenfreado. A não ser que do outro lado haja um “sim”.

-/-

Obs: Tomei a liberdade de substituir a palavra propaganda, no texto do Fernando, por publicidade, pois a propaganda é a propagação de mensagens de fé e a publicidade a distribuição de mensagens de vendas – como é a desqualificada campanha da Kaiser, no Brasil.

 

 

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