6:02Homem organizado para seduzir

por Ivan Schmidt 

“Os sentimentos têm seu destino. Existe um contra o qual todo mundo é implacável: a vaidade. Os moralistas recriminaram-na em seus livros, inclusive aqueles que melhor mostraram o importante lugar que tem em nossas almas. As pessoas comuns, que também são moralistas à sua maneira, pois vinte vezes por dia têm que julgar a vida, têm repetido a sentença dada pelos livros contra esse sentimento, o último de todos, a lhe darmos ouvido”.

A frase é de autoria de Barbey d’Aurevilly (1808-1889) na abertura do ensaio “O dandismo de George Brummell”, cuja primeira edição data de 1845 e está incluída no Manual dodândi, a vida com estilo, que conta também com ensaios de Charles Baudelaire e Honoré de Balzac. O volume foi publicado no Brasil pela Autêntica de Belo Horizonte (MG) em 2009, com organização, tradução e notas de Tomaz Tadeu.

Necessário é alertar é que a ideia remonta a um período da história inglesa e francesa, especialmente, há pelo menos 150 anos, quando dominavam a cena figuras como George Bryan Brummell, nobre inglês nascido em Westminster, filho de W. Brummell, secretário particular de lorde North, dândi também ele “em certos momentos”, que se dava ao desplante de dormir “por desprezo, em seu assento de ministro, durante os mais virulentos ataques dos oradores da oposição”.

Sem exagero, pode-se afirmar que de certo modo essa graça natural ou caprichosamente cultivada se aplica a alguns personagens que em Pindorama revoluteiam aos olhares daquela parcela de humanos que ainda não perdeu inteiramente o interesse na política, para estacionar nessa área restrita.

Os atores que aí se manifestam dão valor inestimável aos sentimentos e, por isso, não medem esforços na busca da aprovação dos outros, comportamento que d’Aurevilly traduz como “inextinguível sede de aplausos da galeria que, nas grandes coisas, se chama amor da glória e, nas pequenas, vaidade”.

Não vou tratar, por absoluto desinteresse factual, do dandismo propriamente dito, “uma maneira de ser que não se resume ao aspecto materialmente visível. É uma maneira de ser inteiramente composta de nuances, como sempre acontece nas sociedades muito antigas e muito civilizadas, nas quais a comédia torna-se bastante rara e a convenção triunfa ao preço do tédio”.

Mas, não venço a tentação mesmo obtusa de comparar certos matizes do dandismo e do dândi, em particular, com as múltiplas aparências do caleidoscópio político, aliás, um campo em que a figura do dândi é mais que notória. Características do referido estilo como o penteado, a elegância do corte das roupas, o maneirismo afetado do falar e o próprio gestual, que são sinais peculiares do dandismo, se reproduzem à exaustão no dia a dia de políticos que veem na exposição aos refletores o principal motivo da atividade.

D’Aurevilly dizia a respeito de Brummell que “nas situações em que os mais hábeis teriam se perdido, ele se salvava. Sua audácia era a medida certa. Ele era capaz de tocar impunemente o cutelo. Diz-se, contudo, que esse cutelo, cuja lâmina ele tinha tantas vezes desafiado, acabou por atingi-lo”.

Na história recente da política brasileira, um antípoda de Brummell, cuja mãe contra toda a esperança “nasceu analfabeta”, juízo que lhe alcançava a parca escolarização que a pobreza obrigou a substituir pelo trabalho braçal desde a meninice, ascendeu pelo intenso magnetismo pessoal ao terreno em que “as relações valem mais que o mérito e onde os homens, para que cada um deles possa apenas existir, devem apegar-se como crustáceos”.

Brummell vivia cercado de admiradores e rivais, muitos deles agindo deliberadamente a seu favor apesar dos contrários, da mesma forma que o futuro operário metalúrgico oriundo do Nordeste como tantos outros patrícios que continuaram anônimos, quando chegou sua hora soube tirar proveito do relacionamento e até da amizade com importantes líderes da indústria pesada do ABC paulista.

Assim como a histórica e distante personalidade inglesa, o operário que chegara ao paraíso marcava seu diferencial dentre os demais que o cercavam e, essencialmente em relação a “quase todos os homens organizados para seduzir”, segundo a expressão de d’Aurevilly.

Vejo exemplos claros de homens destinados a seduzir em Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Mário Covas e Teotônio Vilella, para citar uns poucos daquela fase, que à exceção de Fernando Henrique Cardoso, mesmo tendo experimentado em algum momento da longa vivência pública o cheirinho do poder supremo, que parecia prestes a cair-lhe no colo, jamais viram o sonho realizado.

Entretanto, esse sortilégio foi usufruído – e há escassa explicação para isso – pelo menos indicado de todos, ou seja, o iluminado torneiro mecânico nascido em Caetés, Pernambuco.

Os reveses registrados na trepidante experiência vivida por Brummel tiveram rápida sucessão até o desaparecimento do meteoro, segundo o biógrafo convencido de que “esse fim estava há muito tempo à espera”.

Depois de algumas tentativas frustradas, o antigo metalúrgico chegou à presidência da República e durante os anos de 2002 a 2010 (seus dois mandatos) foi um dos homens mais poderosos do país, fruto de sua extrema habilidade de jogador embora tal perspicácia não tivesse se originado da tavolagem – como Brummel — mas dos lances  bem pensados do jogo político.

Como nem tudo pode continuar perfeito ou durar para sempre, apesar das maquinações oníricas forjadas por bajuladores e oportunistas, nem a habilidade, o sangue frio e o hábito podem lutar contra o acaso ou impedir que se ofusque o sucesso de uma vida em plena ascendência.

O operário presidente (primeiro na história do Brasil), para resgatar uma séria advertência de d’Aurevilly, “como todos os jogadores, insistiu em ir contra a sorte e foi vencido”. Na esteira daquele que o antecedeu na história o personagem de hoje também “recorreu aos usurários e arruinou-se com os empréstimos”.

A linguagem é metafórica, entenda-se, mas propícia para a elucubração de que para chegar à presidência acalentada como predestinação, amigos de primeira hora e conselheiros leais foram substituídos por ádvenas infiltrados na panelinha, isto é, elementos estranhos ao ambiente sindical e/ou partidário no qual o líder despontou.

Num repente o chefe poderoso viu-se cercado por lobistas, seguranças, churrasqueiros, carregadores de malas (muitas delas transportando dinheiro vivo) e uma que outra comborça, que ninguém é de ferro. Percebida a mancada, alguns dentre a patota indesejável receberam o carimbo de aloprados, tais foram os prejuízos morais causados ao maioral.

Vale a pena comparar com atores contemporâneos, mesmo numa pálida hipótese, o que escreveu d’Aurevilly sobre o nobre inglês que nunca perdeu a dignidade, embora o apurado a seu respeito “teria podido autorizar alguns ruídos, talvez, que ele era dotado das perigosas qualidades que se destacam, pela pose, até na baixeza, e das quais às vezes abusou”.

Quanto à influência exercida por amigos e conselheiros prontos para compartilhar as derrotas sucessivas nas campanhas pela presidência, o chefe rendeu-se a outras vozes e aposentou o macacão de ferramenteiro e o discurso iconoclasta. Foi na campanha de 2002, onde algumas vezes era visto envergando ternos elegantíssimos cortados pelo mago Ricardo Almeida (diziam que a quatro mil pratas cada um), que o ponto passou a ser cantado pelo marqueteiro Duda Mendonça, aquele que recebia seus proventos em contas abertas no exterior.

Novos amigos o convenceram a dar ouvidos também aos arautos do capitalismo internacional, aos bancos e megaempresas (comenta-se que o caminho foi aberto por José Dirceu), se quisesse ter sossego para governar. Isso também pode ser entendido como a sugestão balbuciada por grandes empreiteiros sobre a provisão de incalculáveis somas de dinheiro para o financiamento das futuras campanhas.

O convencimento acabou parindo o eufemismo da Carta ao Povo Brasileiro, como se dessa entidade imaterial dependesse a indulgência plena para amarrar por cima a negociação.

No primeiro mandato o script foi seguido à risca com o comando da política econômica confiado a Henrique Meirelles (Banco Central) e a Antonio Palloci, ex-prefeito de Ribeirão Preto e coordenador da campanha (Ministério da Fazenda). Ouro sobre azul enquanto os mentores do novo governo seguiram a política neoliberal do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

O magnetismo do chefe ainda estava vivo e operante na eleição da substituta, mesmo arrostando a ação devastadora que o mensalão havia imposto ao carro-chefe da composição governista. A situação era caótica e a falta de nomes à altura do desafio que se impunha era tamanha que a engenharia política do antigo líder sindical – não tem tu vai tu mesmo – não teve recurso senão optar pela figura opaca da então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Foi o que se viu.

Vivo fosse, Barbey D’Aurevilly escreveria de modo conspícuo e tremendamente apropriado ao apresentar o retrospecto da situação política brasileira no início de 2016: “O liberalismo de ideias… nesse país do farisaísmo altivo, da convenção cristalizada e mentirosa, não brilhou mais que um passageiro instante, e reina ainda do fundo se seu sepulcro caiado”.

 

 

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