… a coisa mais parecida com o mundo no seu conjunto não é um mapa-múndi nem um globo: é uma biblioteca. Quando passeamos pelas ruas da cidade, andamos entre estantes. Quando amamos, odiamos ou transitamos pelo leque das paixões humanas, estamos apenas retirando algumas narrativas da estante pela qual passamos – e, claro, mergulhando entre as páginas. (Contardo Calligares)
Ciao, Eco
Umberto Eco praticava um regime singular: quando chegava a dois terços de sua porção, de repente empurrava o prato para longe, exclamando: “Basta!”. Quem almoçasse com ele podia facilmente se assustar.
Paradoxalmente, a voz interna do superego nos proíbe e nos limita –”não faça sexo com um anjo; com dois, ainda menos!”– ou nos manda exagerar –”goze!”, “tome mais uma saideira!”.
Eco fazia bom uso do superego, conciliando suas duas funções. Graças ao “basta!”, ele podia comer de tudo, porque comia com juízo. Há, nessa minha lembrança, uma metáfora da extraordinária qualidade e variedade da produção de Eco.
Ele publicou, em 1975, o “Tratado Geral de Semiótica” –isso na tradução da Perspectiva; de fato, era “tratado de semiótica geral”. Mas sua grande paixão não era a de conseguir descrever o funcionamento da linguagem e da significação, e ainda menos a de apresentar esse funcionamento de maneira sistemática.
Eco amava a linguagem e os signos porque sentia e sabia que o mundo no qual vivemos é o conjunto infinito e aberto de tudo o que foi dito, escrito ou significado (de uma maneira ou de outra) desde que os homens começaram a falar e escrever –ou seja, desde que foram homens.
Em outras palavras: a coisa mais parecida com o mundo no seu conjunto não é um mapa-múndi nem um globo: é uma biblioteca. Quando passeamos pelas ruas da cidade, andamos entre estantes. Quando amamos, odiamos ou transitamos pelo leque das paixões humanas, estamos apenas retirando algumas narrativas da estante pela qual passamos –e, claro, mergulhando entre as páginas.
Você acha que se apaixonou perdidamente hoje mesmo ou ontem? É que você tirou da estante um romance de amor e sacudiu seus sentimentos de uma das formas que já foi contada (ou, com um pouco de sorte, você misturou várias e, nesse sentido, inventou algo novo).
Você pode não ter lido “Os Sofrimentos do Jovem Werther” nem os romances melados de Barbara Cartland, mas traços dos dois chegaram até você pelas mil narrativas graças às quais você aprendeu o que é amar –quadrinhos, filmes, telenovelas, contos de fada que a sua mãe contava… Em suma, o andaime de seus amores são histórias, livros, filmes –linguagem.
Eco devia estar cansado desta brincadeira, mas é impossível não pensar que havia uma espécie de destino contido no sobrenome dele: o eco faz com que, quando você acha que vai falar ou gritar com a natureza (ou seja, com qualquer coisa que nada tem a ver com a linguagem), o que você recebe de volta é também linguagem. As pedras do Grand Canyon existem porque respondem aos turistas que gritam.
Não fica claro? Pois bem, ninguém dava a menor pelo pôr do sol, ninguém parava para olhar aquilo, até que Turner decidiu fazer dele o protagonista de tantos quadros. O pôr do sol existe porque alguém o pintou. O amor existe porque alguém o narrou.
Enfim, Eco foi se interessando menos pela teoria linguística e semiológica e muito mais pelas histórias que dão forma ao mundo e à vida da gente. E ele começou a contar histórias nas quais os verdadeiros protagonistas são outras histórias.
O livro dele que eu prefiro é “A Misteriosa Chama da Rainha Loana” (Record, 2005) porque é uma obra sobre as histórias que sustentaram a infância de Eco –e, como ele, eu tive uma infância italiana.
Sobre meu primeiro romance, “O Conto do Amor”, um crítico medíocre escreveu que ele era no estilo de “O Nome da Rosa”. Contrariamente ao tal crítico, eu adoraria essa ascendência, mas, de fato, para Eco, tudo acontecia, por assim dizer, dentro da biblioteca do mundo: se tem salvação, ela vem graças a outras histórias da mesma estante. Eu sou mais iludido: para meu protagonista, se havia salvação, ela não se encontrava na biblioteca do mundo, mas em alguma coragem de agir.
Numa coletânea de frases de Eco, no UOL, foi citada esta, de não sei qual entrevista: “Eu passei a acreditar que o mundo inteiro é um enigma. Um enigma inofensivo que é feito por nossa própria tentativa furiosa de interpretá-lo, como se houvesse nele uma verdade secreta” –a qual, entende-se, não existe, como não existe um autor divino do livro do mundo.
Eco pode ser lido por qualquer um. Mas não é para principiantes.
Nota: em 1995, para a Folha, entrevistei Umberto Eco em Nova York. Reli a conversa, comovido por sua inteligência e clareza. Quem quiser ler, está emfolha.com/no1741488.
*Publicado na Folha de S.Paulo