por Ivan Schmidt
Personagem do romance Doutor Fausto, escrito pelo alemão Thomas Mann (1875-1955), pronunciou uma frase que admite um sem número de interpretações e aplicações a casos distintos, partindo-se do princípio que o livro publicado em 1947 foi recebido pela crítica como um libelo aos excessos da arte contemporânea, “estabelecendo uma conexão entre a crise espiritual e a barbárie política”.
A frase é a seguinte: “”Questionável é um adjetivo excelente, que, do ponto de vista filológico, sempre apreciei muito. Induz a pessoa tanto a ocupar-se de uma coisa como a evitá-la. Em todo caso, devemos usar de grande cautela no contato com assuntos desse gênero, que – trate-se de objetos ou de criaturas humanas – se situam sob a luz equívoca do ponderável e também do suspeito”.
No mínimo, embora o esforço seja demasiado cansativo para muitos, a crise político-institucional escancarada hoje no Brasil poderia ser escrutinada com o auxílio da lente fornecida pelo romancista alemão, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1929.
Afinal, o teatro de marionetes em cartaz em Brasília desde o início da semana apresenta-se de tal maneira confuso e desprezível, que o observador tem enorme dificuldade para separar o que é ponderável do suspeito. Em outras palavras, a política brasileira hoje na ribalta parece ter perdido a capacidade de fazer a diferença entre o significante e o insignificante.
Tento explicar. O Congresso Nacional, especialmente a Câmara dos Deputados, tornou-se o centro das atenções gerais desde que o deputado Eduardo Cunha, que preside a casa, aceitou o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff. As razões que o levaram a decidir pela aceitação (e ele tem poder legal para isso) ficaram, entretanto, manchadas pelo fato não menos grave de que o Conselho de Ética da Câmara estava prestes a iniciar a votação do parecer autorizando o prosseguimento do processo de cassação de seu mandato, em função das investigações da Lava Jato sobre depósitos na Suíça, resultantes de propinas recebidas da quadrilha que roubou a Petrobras.
Ato contínuo, Eduardo deflagrou o andamento regimental do impeachment, solicitando aos partidos a indicação de deputados para compor a Comissão Especial para exame da proposição liderada pelo jurista Hélio Bicudo, ex-fundador do PT.
É possível supor que tendo em vista o açodamento do presidente da Câmara em dar curso ao pedido de impeachment de Dilma, ele mesmo tivesse pensado pouco sobre o útil e necessário exercício da separação entre o ponderável e o suspeito, pois seu gesto seria imediatamente rotulado como vendeta.
Pela primeira vez na atual legislatura configurou-se a flagrante divisão da Câmara entre governistas e oposicionistas, ou seja, defensores do mandato de Dilma e apologistas do impedimento, na verdade, previsto na Constituição desde que obedecidas criteriosamente as normas prescritas na lei maior.
Governistas formaram e apresentaram a chapa da Comissão Especial para a homologação pelo plenário, mas os oposicionistas reagiram prontamente ao que classificaram como intromissão do Planalto em assuntos internos do Legislativo, arrazoando que a chapa havia sido constituída no gabinete presidencial. O contragolpe veio na forma de uma chapa independente e favorável ao impeachment, formada pela oposição e aprovada por 272 votos contra 199, a primeira derrota do governo nesse particular.
No início da noite de terça-feira (8), o ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de medida liminar determinou a suspensão temporária do trâmite do processo de impedimento da presidente Dilma no plenário da Câmara dos Deputados, acatando medida judicial protocolada pelo governista PCdoB. A liminar vale até o próximo dia 16 (quarta da semana que vem), quando o plenário da Suprema Corte deverá julgar o conjunto de ações em defesa do mandato presidencial.
A liminar de Fachin, porém, não anulou nenhuma das votações realizadas até agora, a exemplo da Comissão Especial aprovada pela maioria da Câmara também na terça-feira, em meio a uma sessão tumultuada por agressões físicas, palavrões e até danos materiais nas cabines de votação, que a princípio tiveram o acesso bloqueado por parlamentares petistas.
Há quem veja pontos positivos na decisão de Fachin, na medida em que ela atesta o funcionamento isonômico das instituições republicanas, devendo a Câmara aguardar o pronunciamento definitivo do plenário do STF, no dia 16, sobre o prosseguimento ou não do processo de impeachment.
Todavia, é bom estar atento à luz acesa pelas declarações do ministro Gilmar Mendes, em palestra recente no Rio de Janeiro, quando esclareceu que um processo de impeachment não requer, necessariamente, provas de corrupção ou peculato que são alguns dos elementos que tipificam a improbidade administrativa ou o crime de responsabilidade. Disse ele que processo dessa natureza, apesar da judicialização que decerto vai ocorrer, é uma questão que se decide no âmbito político.
Enfim, o clima de retaliação entre o governo e a Câmara parece não ter limites, batendo a quizília na convocação ou não do recesso de final de ano, a bem da verdade providência regimental corriqueira hoje travestida da importância de uma estratégia de guerra. Cunha é contra porque precisa de tempo para manobrar sacando novas armas de seu arsenal, mas o governo insiste na convocação para o trabalho parlamentar nas férias, supondo que tem força para barrar a ofensiva pelo afastamento de Dilma.
Um exemplo é a deformação caricaturesca, para usar uma expressão de Sérgio Buarque de Holanda, que o deputado Eduardo Cunha impõe sobre o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, que simplesmente não consegue se livrar das travas colocadas pela tropa de choque do presidente da Câmara. É um hino profano aos padrões áulicos que robustecem uma tendência patológica e invencível para o triunfo a qualquer preço, embora se limitem a oferecer à opinião pública um espetáculo cada vez mais escabroso e repugnante.
No Senado a paz aparente é garantida por Renan Calheiros, José Sarney, Jader Barbalho e Fernando Collor, o que não deixa de forçar a uma companhia indesejável setores de um partido que historicamente lutou para derrotar esses ilustres avestruzes da política. Não bastasse isso, os meios de comunicação detonaram a carta encaminhada pelo vice-presidente Michel Temer à presidente Dilma Rousseff, aliás, reputada pelos analistas políticos como a declaração de rompimento entre ambos.
Horas depois os bombeiros de sempre entravam em ação para evitar o acirramento dos ânimos e uma perda irreparável para a debilitada unidade do governo Dilma. Houve um encontro da presidente e do vice na noite dessa quarta-feira (9), e se o desembarque do PMDB do governo não foi oficialmente anunciado, nem mesmo a Velhinha de Taubaté tem razões para acreditar que Dilma e Temer vão andar de bicicleta juntos.
O primeiro efeito desse duelo de idiossincrasias foi a deposição do líder do PMDB na Câmara, deputado Leonardo Picciani (RJ), tido e havido como aliado da presidente Dilma Rousseff, substituído pelo colega Leonardo Quintão (MG).
Como nesse país do fim do mundo tudo é complicado, o esforço de Hércules em cortar uma a uma as cabeças da hidra, pode ser comparado à dificuldade de compreender um quadro extremamente descontinuado. Não há parâmetros seguros para separar o que é ponderável do que é suspeito. Ou, o que é fato do que é meramente conversa pra boi dormir.
Se existe algo concreto é que o governo não governa: a economia está em recessão, a inflação acaba de superar a casa de 10% e o PIB registrará crescimento negativo de 3,5%. A Moody’s já acena com o possível rebaixamento do grau de investimento do Brasil, com base na deterioração da economia e instabilidade política. É a tempestade perfeita.
Enquanto isso os políticos com mandato eletivo na capital da República se entreolham e rosnam acusações mútuas de culpabilidade, mesmo tendo gasto mais um ano sem aprovar uma só medida relevante para a população.
Recomendo a alguns deles, mas poupo o leitor da citação de seus nomes, que evitem se aproximar de pocilgas. Pode ser que os porcos comecem a vomitar, conforme sugeriu o poeta Lautreámont ao tentar medir a fundura a que pode chegar a sordidez humana.
Ivan, como sempre, “acertou na mosca” mais uma vez.
Continue assim…
wilson portes