8:03Pelé

por Armando Nogueira

Sua vocação de jogador de futebol é incomparável e se  exprime no campo com a mesma espontaneidade da bola que rola; é tão perfeito no criar como no fazer o gol,  no drible, no passe, no chute, na cabeçada.

Seja em  que circunstância for, Pelé mantém com a bola uma  relação de coexistência absolutamente íntima, terna, cordial; por isso é bom goleiro e ótimo goleador; por  isso, é capaz de estar, ao mesmo tempo, na concepção e na realização de uma jogada.

Seu talento é do tipo  esférico como a bola, o seu brinquedo mágico.

A técnica individual de Pelé não merece um só reparo  do mais exigente crítico de futebol: ele domina a bola com naturalidade e perfeição, usando qualquer parte do corpo, notadamente os pés e o peito; tem chute potente e certeiro com as duas pernas; dribla com facilidade e  grande arte, valendo-se de incrível poder de  articulação nos tornozelos, joelhos, cintura e,  sobretudo, graças a uma força instintiva, medular, que  lhe permite sair criando movimentos novos,  irresistíveis, à base de contrapés, falsas hesitações,  meneios e desequilíbrios aparentes.

Usa as faces  exteriores e interiores dos pés tanto para o drible e o chute como para fazer passes de efeito; tem espantosa velocidade de partida e de corrida e se  eleva para as cabeçadas com uma elasticidade impressionante e com uma noção de tempo que só se vê  nos grandes especialistas dessa jogada ( o húngaro Kocsis, por exemplo); tem agilidade felina para  recobrar o equilíbrio perdido.

E aqui vale a pena  recordar lance recente no jogo Brasil 5 X Argentina 1, no Maracanã.

Pelé recebe a bola na corrida, entra na defesa  driblando uma fila de adversários; o último,  pressentindo o perigo, aplica uma rasteira que alcança  Pelé em pleno ar.

Pelé se desequilibra, vai cair de  costas, a bola foge ao seu domínio, o juiz apita a  falta.

Mas eis que no instante do apito, Pelé consegue  recobrar o equilíbrio, alcança novamente a bola e  restabelece a excelente condição de gol que  conseguira.

A essa altura, porém, já o árbitro havia  interrompido o jogo e todo o maravilhoso esforço de  recuperação de Pelé resultava inútil.

Restou-lhe o  consolo de ver o árbitro Juan Armental correr na sua  direção e pedir-lhe desculpa humildemente, por ter apitado.

Mais tarde, o juiz explicava à imprensa que  aquele fora o maior exemplo de agilidade pessoal  jamais visto em um campo de futebol nos seus vinte  anos de arbitragem.

Por fim, Pelé tem uma capacidade quase irreal de  infiltrar-se com a bola defesa adentro.

Vai como um  raio, dando a impressão ao espectador de que está  atravessando os corpos dos adversários.

Temos ouvido  tanta gente querendo descrever as infiltrações de Pelé  mais ou menos assim: ele ia passando por dentro dos  outros.

Realmente, o lance é muito rápido e sugere a  imagem.

O que ocorre, simplesmente, é que ele realiza  a ação em alta velocidade e com notável noção do  próprio corpo, que se assegura o mínimo de tropeços, o máximo  de equilíbrio e grande fluência na corrida.

Em apenas três anos de prática ininterrupta, Pelé  melhorou sensivelmente o seu futebol.

Não tanto do  ponto de vista da técnica individual, que nisso ele é  perfeito de nascença, mas no plano da ação coletiva.

Antes, Pelé era um atacante, um especialista dos  chutes e cabeçadas à porta do gol; hoje ele multiplica  sua presença conseguindo ser, com igual eficiência,  construtor e finalizador; num momento, Pelé é o arco  que aciona e em seguida vai ser a flecha que alveja.

Do ponto de vista moral, ele já se destaca como grande  animador de equipes, impondo aos colegas e aos  adversários a autoridade indiscutível que vem da alta  categoria técnica.

Uma única face de sua forte  personalidade não tem evoluído no sentido da  perfeição:  a serenidade.

Ele perdeu muito daquela ingenuidade com  que jogava nos começos da carreira; ficou irritadiço, impaciente.

Mas, coitado, tanto sofreu nos pés dos  medíocres, tanto lhe deram pontapés que ele hoje  deixou de ser aquela força da natureza exprimindo-se  puramente, sem amargor.

Antes, davam-lhe um trompaço  brutal, ele se levantava, limpava os calções e ia  tomar posição de jogo; agora, se o derrubam com  deslealdade, ele raclama furiosamente”. 

*Publicado na revista Senhor de novembro de 1960, quarto ano de Pelé como profissional de futebol

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