6:57O estadista da educação

por Ivan Schmidt

Por ser profundo estudioso e conhecedor dos problemas da educação e cultura, ele próprio professor universitário e historiador, o autor a quem venho recorrendo para fundamentar os artigos aqui publicados nas duas últimas semanas, Carlos Guilherme Mota, sempre teve grande respeito e admiração por ilustres intelectuais brasileiros como Fernando de Azevedo, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Raimundo Faoro e Darci Ribeiro, para lembrar alguns dos expoentes que contribuíram com o brilho de sua inteligência para conceber elementos de formação cultural para a cidadania.

Entretanto, é justo reconhecer o enorme apreço intelectual que Carlos Guilherme sempre devotou (e seus escritos são prova dessa afirmação) ao professor Anísio Teixeira, cujo centenário de nascimento ocorreu no ano 2000.

No livro Educação, contraideologia e cultura, desafios e perspectivas (Editora Globo, RJ, 2011), num dos muitos ensaios sobre a obra do mestre, o historiador assinalou que “no Brasil, nesse ano 2000 d.C., imerso num oceano de mediocridade nacional, de violência e barbárie, ocorre o centenário de nascimento de três grandes personagens, brilhantes e complexos: o sociólogo Gilberto Freyre, o crítico Mário Pedrosa e o educador Anísio Teixeira”, na sua avaliação “três intelectuais que ajudaram a dar fisionomia nova ao Brasil, ativando nossa escassa imaginação histórico-sociológica”.

A atenção do leitor é chamada para o fato de que – na época do centenário – “o professor Anísio Teixeira começa a ter sua ação e obra reconhecidas lentamente ou, em muitos meios pedagógicos, conhecida pela vez primeira (o que é de pasmar)”. Segue-se a lógica dessa excrescência: “Pois os anos da ditadura retiraram suas ideias dos debates e pesquisas educacionais, históricas e culturais: no cenário da universidade, assistiu-se a cada vez mais reuniões sobre a ‘pedagogia’, a ‘metodologia’ e a teoria de uns duzentos autores menores do que sobre a obra do professor Anísio Teixeira”.

“Estadista da educação” como o definiu Hermes Lima em relato biográfico sobre o baiano nascido em Caitité, ex-jesuíta e amigo de Monteiro Lobato, Anísio foi o principal redator, ao lado de Fernando de Azevedo, do Manifesto dos pioneiros da educação em 1932 e “teórico da criação da Universidade de Brasília”, segundo o depoimento de Carlos Guilherme Mota.

Passados 15 anos, isto é, a primeira década e meia do terceiro milênio, é oportuno rememorar o que escrevia o professor da USP sobre a contribuição de quem carregava o ideal de formular linhas de pensamento em tudo capazes de transformar o Brasil: “Precisamos nos dar conta de como nos perdemos, no meio do caminho, no emaranhado de legislações absurdas que nos desviaram do projeto de construção de uma nação educada e deveras democrática, bem formada. Muitas discussões e análises permitirão perceber o quanto obras como a dos educadores Paulo Freire, Florestan Fernandes e Darci Ribeiro, entre tantas outras, devem a Anísio. E, também, discutir o quanto se afastaram ou não dos altos padrões de excelência defendidos por ele”.

Naquela altura, a virada do século, era nítida a consciência de que “a máquina do Estado, no afã atual de fixar métodos de avaliação e excelência, complicou a vida e a imaginação dos pesquisadores e professores, enredando-nos numa rotina burra que consome o tempo de reflexão, de leitura, atualização, de pesquisa, de criação, exaurindo a energia e a sensibilidade para o trabalho universitário. A universidade aguarda uma autêntica corregedoria, para recolocar as coisas e as ideias no lugar. Talvez ainda seja tempo”.

Iluminado por uma bela formação humanista interdisciplinar, Anísio sempre alertou para a necessidade da construção do que chamava de “universidade de fins culturais”, gradativamente caracterizada como “grandes centros de irradiação científica, filosófica e literária do país”.

A proposta de Anísio Teixeira buscava a inovação teórica da educação articulada com processos mais amplos de renovação cultural e mudanças sociais, engendrando aquilo que hoje poderíamos chamar de “sentido moderno da educação brasileira”, segundo Carlos Guilherme Mota.

“Homem sem partido político”, lembrava o historiador, “retirado das hierarquias sociais baseadas numa ordem supostamente natural, Anísio Teixeira afirmava em sua obra a percepção do prelúdio da modernidade brasileira, proclamando a necessidade de outra ordem, fundamentada na harmonia de interesses individuais contextualizados em uma cidade ideal, explicitadora, sobretudo, de uma vida cosmopolita”.

Com base nos paradigmas da educação e da pedagogia, na verdade, palavras-chave do discurso professoral de Anísio Teixeira, a essência de seu labor convergia para a formação adequada de novos quadros, formação vista por ele “como emergência da modernidade, que despontava com novos hábitos secularizados e maneiras de ser que deveriam ser valorizados”.  Mota acrescenta que tal lucidez poderia “solucionar os males oriundos de uma sociedade competitiva, diferenciada, instável e secularizada, sob o signo de um tempo histórico dividido pela erupção de múltiplos confrontos ideológicos”.

Na temática eleita para a análise permanente de Carlos Guilherme Mota, e nem seria diferente, há um grande espaço preenchido pela universidade como fator exponencial na disseminação de cultura, humanismo e tecnologia – elementos indispensáveis na formação cultural de quaisquer povos comprometidos com o desenvolvimento das gerações presentes e futuras. E nesse particular, Mota não se afastou em nenhum momento dos pressupostos a seu tempo semeados pela fertilidade das ideias e inovações derivadas do pensamento de Fernando Azevedo, Anísio Teixeira, Antonio Candido e Florestan Fernandes, entre outros.

O balanço não é dos mais apreciáveis, reconheçamos a contragosto. Mota advertia já em 1995, há 20 anos, que “a universidade continua muito aquém de sua missão. É bem verdade que vinte anos de ditadura, ou mais, foram conturbados, quando não perdidos. Hoje, cobra-se muito dela e pouco se oferece. Mas também é verdade que as novas gerações, que em tese deveriam ser mais informadas, mais cosmopolitas e internacionalistas, ainda não deram seu recado. Algumas faculdades relutam mesmo em oferecer cursos noturnos. Outras não querem nem ouvir falar em cursos de extensão, de férias ou nos importantíssimos cursos para a terceira idade”.

A receita sugerida (mas ignorada desde sempre) prescrevia que “à universidade incumbe formular uma pauta de temas e de instrumentos de trabalho (o livro é apenas um desses instrumentos, embora o mais importante) nos vários campos do saber, das matemáticas à ética política e à história, da psicanálise e da psicologia social à economia política, da medicina social ao direito civil”.

Assim, torna-se imperioso e sem medir sacrifícios “reconstruir uma perspectiva histórica num país como o nosso, com a carga legada pelo período colonial e pelo império, de cujos quadros mentais – ‘prisões de longa duração’, segundo Fernand Braudel, ainda não nos livramos, só pode ser tarefa coletiva, a ser assumida num pacto talvez silencioso pelo grupo-geração que chega à maturidade nesse fim de século. E que tem a pesada responsabilidade de transformar, fora da metodologia desmobilizadora da conciliação, esse aglomerado de gente, o lumpesinato imenso em que a sociedade brasileira está se transformando, verdadeiro barril de pólvora, numa sociedade de cidadãos criativos, úteis, qualificados culturalmente, com boa perspectiva internacionalista de suas particularidades”.

Por uma dessas estranhas armadilhas da política como espetáculo se convencionou chamar o Brasil de “Pátria Educadora”, em flagrante apagão mental e tardio acesso delirante à moda do Dr. Strangelove…

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