por Drauzio Varella
A comissária de bordo pede para afivelarmos os cintos e desligarmos os celulares. O comandante avisa que a decolagem foi autorizada, a aeronave ganha velocidade na pista e levanta voo.
Pela janela, São Paulo vira um paliteiro de prédios espetados um ao lado do outro. Um pouco mais à frente, a periferia inchada, com ruas tortuosas e casas sem reboque, abraça o centro da cidade como se fosse esganá-lo.
Em poucos minutos, ouve-se um som agudo, sinal de que os computadores podem ser ligados. Junto à porta de entrada, as comissárias se levantam e preparam o carrinho de lanches.
De fileira em fileira, perguntam o que cada passageiro deseja beber. No carrinho, acotovelam-se latas de refrigerantes, a garrafa de café e uma infinidade de pacotes de sucos mais doces do que o sorriso da mulher amada. O rapaz à minha direita prefere suco de manga; o da esquerda quer um de pêssego. Agradeço, não quero nada. A moça estranha: “Nada, mesmo?”.
Em seguida, ela nos estende a mão que oferece um objeto ameaçador, embrulhado em papel branco. Em seu interior, um pão adocicado cortado ao meio abriga uma fatia de queijo e outra retirada do peito de um peru improvável.
No reflexo, encolho as pernas. Se, porventura, um embrulho daqueles lhe escapa da mão e cai em meu pé, adeus carreira de maratonista.
Espremidos em assentos planejados para anões que venceram campeonatos mundiais de baixa estatura, meus companheiros de infortúnio aceitam o sanduíche emborrachado que jamais faria a travessia do esôfago, não fosse o auxílio providencial de dois goles de líquido à cada porção mastigada.
O comandante informa que em Belo Horizonte o tempo é bom e que nosso voo terá duração de 40 minutos. São dez e meia, é pouco provável que os circunstantes tenham saído de casa em jejum.
O que os leva a devorar no meio da manhã 500 calorias adicionais, com gosto de isopor? Qual é o sentido de servir comida em voos de 40 minutos?
Cerca de 52% dos brasileiros com mais de 18 anos sofrem com o excesso de peso, taxa que nove anos atrás era de 43%. Já caíram na faixa da obesidade 18% de nossos conterrâneos.
Os que visitam os Estados Unidos ficam chocados com o padrão e a prevalência da obesidade. Lá, a dieta e a profusão de alimentos consumidos até em elevadores conseguiram a proeza de engordar todo mundo; não escapam japoneses, vietnamitas nem indianos.
As silhuetas de mulheres e homens com mais de 120 quilos pelas ruas e shopping centers deixam claro que existe algo profundamente errado com os hábitos alimentares do país.
Nossos números mostram que caminhamos na esteira deles. Chegaremos lá, é questão de tempo; pouco tempo.
A possibilidade de ganharmos a vida sentados na frente do computador, as comodidades da rotina diária e a oferta generosa de bebidas e alimentos industrializados repletos de gorduras e açúcares que nos oferecem a toda hora criaram uma combinação perversa que conspira para o acúmulo de gordura no corpo.
Os que incorporaram as 500 calorias em excesso no caminho para Belo Horizonte só o fizeram porque o lanche lhes foi servido. Milhões de anos de evolução, num mundo com baixa disponibilidade de recursos, ensinaram o corpo humano a comer a maior quantidade disponível a cada refeição, única forma de sobreviver aos dias de jejum que fatalmente viriam.
Engendrado em tempos de miséria, o cérebro humano está mal adaptado à fartura. A saciedade à mesa só se instala depois de ingerirmos muito mais calorias do que as necessárias para cobrir os gastos daquele dia. A seleção natural nos ensinou a não desperdiçá-las, o excesso será armazenado sob a forma de gordura.
O tecido gorduroso não é um reservatório inerte, produz hormônios, libera mediadores químicos que interferem com o metabolismo e o equilíbrio entre fome e saciedade. E, o mais grave, dá origem a um processo inflamatório crônico que aumenta o risco de doenças cardiovasculares, diabetes, vários tipos de câncer e de outros males que infernizam e encurtam a vida moderna.
Por essas e outras razões, caríssimo leitor, é preciso olhar para a comida como fazemos com a bebida: é bom, mas em excesso faz mal.
*Publicado na Folha de S.Paulo