por Yuri Vasconcelos Silva*
Ela nasce da tensão entre o campo do desejo e A firme terra da realidade. O arquiteto cria o espaço ideal no funcionamento perfeito de seus planos. Busca referências em um complexo banco de dados mnemônico, que inclui todo o repertório de vida absorvido pela mente. Num ritual dualístico, ele separa as boas e más experiências. Os bons projetos, os maus caminhos, as boas lembranças, as horríveis cidades, os bons mestres. Os prazeres e as dores. Em algum momento surge a imagem. Ela ainda é desfocada, mas parece ser promissora. O arquiteto deixa que o tempo desnude a idéia, quase a ponto de poder tocar o edifício da mente.
Quando passa para o papel em branco, a conexão nunca é boa. Há uma falha indetectável na transmissão entre o ideal e o papel. Algo se perde na ponta do lápis. Ou engata ali e não desce de jeito algum. Mas o arquiteto tem um prazo, tem um financiador e tem contas para pagar. Prossegue, portanto. Com toda experiência que possa ter, ainda esbarra na ingênua burocracia que parece ter sido juntada em reuniões de condomínios ao longo dos séculos. A legislação de uso do solo não confia em seus arquitetos. A criação do autor é, pela segunda vez, retalhada por limitações da realidade. Ainda assim, ele não desiste. Se adapta.
Neste ponto, o projeto não é perfeito, mas ainda tem alguma decência. O arquiteto prepara uma bela apresentação, onde tenta recriar aquele mundo ideal em que o edifício está assentado, dentro da mente. Quando mostra ao cliente, o terceiro choque de realidade atinge o projeto e fere o desejo do arquiteto. Trata-se de um choque cultural. De um lado o arquiteto, que gostaria de viver em num paradigma de liberdade artística infinita. Do outro lado, o cliente, que é pragmático e tem uma visão artística menor e referenciais bem diferentes. O diálogo é, muitas vezes, tenso. No final, prevalece aquele que segura o cheque de pagamento.
O caminho continua e, mesmo com o projeto tão desfigurado pela realidade, o arquiteto acredita que pode salvar alguma coisa. Os portadores da racionalidade matemática batem, enfim, à porta do ateliê. Engenheiros. Podem tanto, mas não o fazem. Nesta linha de ação, impossibilitam a obra de ‘vir a ser’ por questões de cálculos. O arquiteto não pode argumentar contra a matemática e, mais uma vez, é forçado cortar as últimas artérias que alimentavam um projeto idealizado.
O projeto vai à obra. Nas mãos de homens bárbaros, o projeto é erguido em uma obra deformada, com ajustes emergenciais em justificativas curtas. “Não dá pra fazer, doutor” é o que muitas vez nesta etapa ouve o arquiteto.
Quando pronta, o arquiteto passa para ver sua obra e lamenta: outro projeto que morreu ainda na casca. Mas o mundo é construído assim, de cascas mal resolvidas – e não é tão ruim.
*Yuri Vasconcelos Silva é arquiteto