6:28O pássaro e o excremento

por Clóvis Rossi

Sergio Ramírez, notável escritor nicaraguense, contou outro dia no jornal espanhol “El País” que estudantes espanhóis lhe perguntaram se voltaria a trocar a literatura pela revolução, como fez nos anos 70, unindo-se aos sandinistas para derrotar a ditadura de Anastasio Somoza.

Chegou a ser vice-presidente de Daniel Ortega, após o triunfo da revolução.

Desencantou-se depois, em especial com a corrupção a que se entregaram quase todos os líderes revolucionários, a começar pelo próprio Ortega, hoje de novo presidente.

Ramírez não respondeu diretamente aos estudantes que o questionaram. Preferiu contar-lhes a história de “el pájaro del dulce encanto”, que corre de boca em boca na Nicarágua.

“Trata-se de um pássaro de bela plumagem e cores fulgurantes que voa sobre as cabeças, incitando a agarrá-lo. Quando alguém ergue as mãos e o pega, só fica nas mãos um montão de excremento.”

É, evidentemente, uma parábola sobre as frustrações que mancham a história da Nicarágua, mas também de toda a América Latina.

O escritor não se conforma, no entanto, com que “nossa história seja um jogo de espelhos, em que uma ditadura reflete a outra, onde um caudilho encontra seu sucessor em outro caudilho, em que uma família se entroniza no poder só para dar lugar a uma outra família, onde a democracia, as instituições firmes, a liberdade de eleger governantes serão sempre só um arremedo, ou uma burla, ou uma pantomima trágica”.

Ramírez estava pensando na Nicarágua ao contar a parábola do pássaro de doce encanto que vira excremento quando agarrado.

Mas poderia estar contando a história de quase todos os países latino-americanos.

Do Brasil, por exemplo. Quantos pássaros desse tipo não agarramos nos últimos muitos anos?

Por acaso, não era de bela plumagem o pássaro das Diretas Já, caçado por multidões nunca antes vistas na história deste país, apenas para virar excremento no Congresso Nacional, que não aprovou a emenda correspondente?

Com requintes de crueldade: do pássaro Diretas Já, as massas se conformaram com o pássaro Tancredo Neves, apenas para vê-lo baixar ao hospital horas antes da posse e dele só sair para o cemitério.

Houve mais pássaros sedutores que sobrevoaram o Brasil, até chegarmos, nos tempos mais recentes, ao pássaro PT, que parecia, de fato, o de plumagem mais bela e ainda por cima mais limpa do que a de todos os seus congêneres.

No entanto, foi só bicar o poder para ir resvalando de mensalão a petrolão até chegar abaixo do volume morto (a versão de Lula, seu criador, para o excremento da fábula de Ramírez).

Meu amigo escritor não se rende. Disse aos estudantes que “o pássaro que voou sobre nossas cabeças é o pássaro falso”.

E continuou, sabiamente: “O outro, o verdadeiro, há que fazê-­lo en­tre to­dos, pluma por plu­ma. O que real­men­te me­re­ce­mos. E o tere­mos”.

Espero que você esteja certo, caro Sergio, mas não sei não se viverei o suficiente para tocar esse pássaro sem que ele defeque em minhas mãos e nas dos que sonham com um país menos prenhe de frustrações.

*Publicado na Folha de S.Paulo

Uma ideia sobre “O pássaro e o excremento

  1. Clint Eastwood

    A semelhança dos fatos é tão grande que se o escritor não dissesse que é nicaraguense eu poderia acreditar que ele fosse brasileiro. Mas quando será que nós vamos conseguir pegar um pássaro nas nossas mãos que não se transforme em merda?

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