16:56Cartas de Dalton Trevisan em acervo no Rio detalham processo criativo do escritor mais recluso do país

Da Folha de S.Paulo, em reportagem de Raquel Coser e Marco Rodrigo Almeida

Uma pequena parte de uma das biografias mais misteriosas do cenário literário brasileiro repousa há décadas nos arquivos da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio.

Ela aparece na forma de 49 cartas e bilhetes que Dalton Trevisan, o mais recluso escritor do país, enviou desde o início da carreira a colegas cujos acervos estão hoje na instituição, vinculada ao Ministério da Cultura.

Aos 90 anos, e há quase 50 sem dar entrevistas, o contista conhecido como Vampiro de Curitiba -nome de livro que lançou em 1965- contou com a discrição de escritores com quem se correspondeu, mas não pôde evitar que, com a morte deles, suas cartas fossem parar em acervo público.

Os documentos, enviados de 1946 a 1994 a Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Antonio Callado, Carlos Castello Branco e José Geraldo Vieira, estão disponíveis para pesquisa na mesma instituição, que, neste ano, esteve no noticiário graças a papéis secretos de seu acervo -a carta em que Mário de Andrade comenta sua sexualidade.

Com frases afiadas, características de um autor que domina a prosa curta, as cartas de Dalton são em geral de uma página e datilografadas. Numa, de 1960, para Castello, vê-se que o Vampiro usou papel-carbono -ou seja, guarda as cartas que escreve.

A informação de que mantém cópias veio à tona em 2010, quando saiu “Desgracida”, seu único livro que inclui também cartas que escreveu -para Otto Lara Resende e Rubem Braga, entre outros.

Do acervo da Casa de Rui, a única presente no livro é uma em que compara a escrita do amigo Nava a de outros grandes, como Euclydes da Cunha e Graciliano Ramos.

A figura que emerge do material é um escritor violentamente autocrítico (“Tinha-me decidido a não mais escrever, por nojo das palavras”, relatou a José Geraldo Vieira, em 1948) e ansioso (“Estou esperando, aflito, carta sua.
Diga-me o que achou dos contos -seja duro, implacável”, diz a Castello, em 1959).

E também irônico (“Como você verá, são histórias de violência e morte, estupro e suicídio; logo você fica sabendo que não melhorei da colite”, informa a Castello, em 1960) e carinhoso (“Bem me lembro, ahimè [ai de mim, em italiano], de como éramos jovens e tanto nos queríamos”, diz a Callado, em 1994).

A correspondência mais alentada é para Castello, das quais estão guardadas 17 cartas, de 1957 a 1963, período em que Dalton preparava e lançava seus primeiros livros.

O jornalista teve grande influência sobre a produção do escritor na época em que ele estreava em âmbito nacional, a coletânea de contos”Novelas Nada Exemplares” (1959).

Dalton pede opinião sobre contos, demonstra admiração, agradece por sugestões. “A esculhambação é, para mim, o melhor estímulo.”

Conta que reduziu um conto de 46 para 26 páginas após ouvir o amigo. “Apertei as malhas, como você recomendou. Com umas 15 páginas pode ser que fique boa história.”

Em 26 de novembro de 1957, informa que as sugestões foram “de grande auxílio no caso das NNE” e avisa que pretende “ameaçá-lo com um [original de] livro por ano”.

Em 18 de junho do ano seguinte, relata ter se divertido escrevendo uma novela, “o que deve ser mau sinal; se me deu prazer ao escrevê-la não o dará por certo a quem ler”. Diz que o texto deveria ser pornográfico, mas teve de mudar os planos porque uma “solteirona” datilografava seus contos. “Fico-lhe devendo portanto uma descrição de 69.”

Embora não haja, na Casa de Rui, cópias das cartas enviadas por Castello, sabe-se, pela resposta de Dalton, que o amigo não gostou da novela.

O jornalista Carlos Marchi, autor de “Todo Aquele Imenso Mar de Liberdade”, biografia de Carlos Castello Branco, cita brevemente no livro a relação do jornalista com Dalton Trevisan.

Embora não tenha chegado a ler as cartas de Dalton para Castello, o biógrafo cita uma de Castello para Otto Lara Resende, em que o primeiro se mostra “irritadíssimo com Carlinhos Oliveira, que publicou um artigo no JB [‘Jornal do Brasil’] desancando a literatura de Trevisan”.

Em carta de 20 de junho de 1959, o próprio Dalton deixara claro a Castello o quanto havia se incomodado com a resenha negativa sobre “Novelas Nada Exemplares”.

“As cartas entre eles tinham sempre alguma sacanagem”, relata Marchi, referindo-se ao grupo de amigos que incluía também Otto e Fernando Sabino.

Dalton enviou pelo menos 320 cartas a Otto -mas estas estão no Instituto Moreira Salles, indisponíveis a pesquisadores, a pedido de Dalton e dos herdeiros de Otto. Provavelmente há muitas outras cartas de Dalton para amigos íntimos, como Nava, Drummond e Castelo, que não estão no acervo da Rui Barbosa.

A correspondência com Pedro Nava depositada na instituição, totalizando 20 papéis, começa com a relação paciente-médico, em 24/5/1974, com Dalton chamando-o de “Caro dr. Pedro Nava”, e segue até 29/12/1983, passando a incluir também comentários sobre a produção literária do agora amigo, a quem Dalton chama de “meu caro Nava”.

“Obrigadinho pelo fabuloso ‘Galo das Trevas'”. Já estou lendo aos poucos e me deliciando -pura broinha de fubá mimosa”, diz em 1981, sobre o livro do amigo.

As cartas mais antigas são para Drummond, enviadas entre 4/6/1946 a 26/9/1955.

Nas primeiras mensagens, o curitibano era então um jovem prestes a completar 21 anos, que escrevia com muita formalidade ao ídolo em busca de conselhos literários. Uma missiva de agosto de 1946 começa assim: “Sr. Carlos Drummond de Andrade”.

Dalton foi um dos fundadores, naquele ano, da revista de “Joaquim”, que circulou até 1948. Na edição número dois aparece um poema de Drummond, “Caso do Vestido”.

Nos anos seguintes, Dalton enviou livrinhos de cordel que editava por conta própria ao poeta, que recomendava ao jovem abandonar “as bonitas palavras, as frases de efeito”.

“Além de ter opinião, você tem a honestidade de dizê-la, doa ou não. Você não diz, como os outros: o rapaz quer elogio, atiro-lhe uns bombons e ele me deixará em paz”, escreveu Dalton em 1955.

LABORATÓRIO
Cartas revelam formação do escritor curitibano

31/8/48

PARA JOSÉ GERALDO VIEIRA

Meu caro José Geraldo Vieira: li o seu artigo sobre o 7 anos num instante de profundo abatimento. Tinha-me decidido a não mais escrever, por nojo das palavras. Foi nesta hora de abatimento que li o seu generoso artigo, que me infunde maior confiança e, sem duvida, é motivo de estímulo grandemente sentido. Se, algum dia, escrever outra linha deverei à sua compreensão e bondade a coragem que me faltava para tentá-lo. Sou, muito grato, o seu amigo

CONTEXTO Em sua única carta manuscrita das 49 disponíveis na Casa de Rui, Dalton agradece ao crítico (1897-1977) por texto elogioso sobre seu “Sete Anos de Pastor”, livro que depois ele renegaria. A crítica sairia dois meses depois, em outubro, na revista “Joaquim”, editada pelo curitibano

25/11/54

PARA CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Meu caro Carlos Drummond de Andrade: segue mais uma novela. Meu Deus, mais uma, dirá você. Lá vem ele (eu) com pedidos de elogio. A questão não é de elogios, eu explico. Se não me publico em cadernos, como aprender os meus erros? A autocrítica não basta. Se lhe digo que em Curitiba posso dar com a cabeça na parede, não se ouve nem som na parede… […] Me diga, Carlos, se algum dia, por desfastio, lera “Morte dum Gordo”, o que achou dela, mesmo num simples bilhete de duas palavras: “não gostei”. Com grande abraço

CONTEXTO Pelo menos desde 1946 Dalton já mandava contos a Drummond (1902-1987), pedindo conselhos. “A Morte dum Gordo” foi publicado numa edição de cordel de mesmo nome, financiada por Dalton, em 1954, ao lado de “O Beco” e “Boa Noite Senhor”

8/1/55

PARA CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Meu caro Drummond,
“…Alguma coisa a contar, você tem… É ir se desapegando da visão literária das coisas e procurando fixá-las na sua expressão própria, na sua complexidade e mistério, abandonando sugestões fáceis, as comparações que são quase sempre insuficiência de expressão, as bonitas palavras, as frases de efeito. Mas você me declara que tem 20 anos, e não preciso dar-lhe lições daquilo que irá aprender por si…”. Por que não passei do bom começo? Duas razões me explicam, se bem que não me justifiquem: eu e Curitiba. Admito, para argumentar, que tenho boa vontade, ousadia, facilidade de escrever. Boa vontade não é talento, facilidade de escrever é escrever mal, a ousadia era dos 20 anos, hoje passados. […]

CONTEXTO Dalton reproduz comentário feito pelo poeta em carta de 1946, sobre “Sonata ao Luar”, livro que Dalton lançou um ano antes e depois renegou

21/2/59

PARA CARLOS CASTELLO BRANCO

Meu caro Castello: a sua carta é a ponte sobre as águas. Você tem razão em toda a linha. Confesso amargamente que a decepção de vocês -sua e do Fernando- não é menor que a minha: minha literatura é merda e eu que esperava tanto de mim! Seja merda (a própria escolha dos temas era um aviso ), mas estou decidido a purificá-la até onde puder. Sozinho seria bem mais difícil -com o auxilio de você, do Fernando, do Otto, espero ser menos ruim escritor do que deveria ter sido. Curitiba não tem culpa nenhuma.

CONTEXTO Muito autocrítico, Dalton sempre pedia sugestões e seguia à risca conselhos dos amigos Carlos Castello Branco (1920-1993), Fernando Sabino (1923-2004) e Otto Lara Resende (1922-1992). Em 1957, já avisava Castello de que pretendia “ameaçá-lo com um livro por ano”

20/6/59

PARA CARLOS CASTELLO BRANCO

Castello
[…] Já o artigo de Carpeaux é a resposta, com 10 anos de atraso, ressentimento, a dois editoriais da revista “Joaquim”: “Cartas de Mário” e “500 Artigos”. Basta ver a referência, numa crítica literária, à minha “comodidade burguesa”. Mas não pense, meu caro Castello, que por não aceitar a opinião do Carlinhos e do Carpeaux, esteja enganado sobre o valor das “Novelas”, que me parece bem pequeno. Ele tem razão ao assinalar o provincianismo da minha literatura, o que aliás nunca neguei. Nesta merda de Curitiba eu me imerdo -e a colite não será uma fatalidade do lugar?

CONTEXTO Dalton comenta as resenhas negativas de Otto Maria Carpeaux (1900-1978) e José Carlos Oliveira (1934-1986) sobre seu livro de estreia oficial, “Novelas Nada Exemplares” (1959), creditando a má vontade do primeiro a uma vingança tardia por textos publicados na revista que ele editara mais de dez anos antes

15 /12/94

PARA ANTONIO CALLADO

Callado, meu caro,
Obrigadinho pelas palavras doces e generosas. Bem me lembro, ahimé, de como éramos jovens e tanto nos queríamos. Pascaliano ou dannunziano, esporrento e lírico, o nosso Helio era um alexandrino em marcha. Você, o único escritor inglês do Brasil, sereno e lúcido entre a multidão ululante de bárbaros. E o grande e querido Otto, coruscante e iluminado, de todos o mais generoso, uma infinita paciência comigo, o Autran, o Nelson e quantos mais! até alcançar afinal a santidade, outro Simão Cireneu na agonia do Rubem. Maior obra literária decerto realizaria, não se tivesse doado tanto com tanta paixão a tantos.

CONTEXTO Na carta mais recente, Dalton celebra os velhos tempos com o amigo Antonio Callado (1917-1997), lembrando colegas como Hélio Pellegrino (1924-1988) e Otto Lara Resende e citando o apoio que este deu a ele e a escritores como Autran Dourado (1926-2012), Nelson Rodrigues (1912-1980) e Rubem Braga (1913-1990)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.