16:24Nós, os escravos

por João Pereira Coutinho

Faço compras no supermercado. Encho o tanque do automóvel. Compro um livro, um filme, um CD. Vou almoçar, pago a conta, saio. E então reparo que não encontrei um único ser humano em todo o processo. Só máquinas. Eu, o meu cartão de crédito –e uma máquina. Então penso: será que Paul Lafargue (1842 – 1911) tinha razão?

Lafargue é pouco lido hoje em dia. Mas, na família Marx, ele é o único que leio com prazer e respeito. Genro do famoso Karl, Lafargue escreveu “O Direito à Preguiça” em finais do século 19. Para deixar uma mensagem otimista: a humanidade deixará o trabalho para trás porque o progresso tecnológico vai libertar os homens da condenação da jornada.

A mensagem de Lafargue é uma espécie de profecia bíblica do avesso: quando Adão e Eva foram expulsos do paraíso, Deus condenou o par desobediente a ganhar a vida com o suor do rosto. As máquinas, escreveu Lafargue, permitirão que os homens regressem ao paraíso, deixando as canseiras da labuta para os brinquedos da tecnologia.

Não sei quantas vezes li o opúsculo de Lafargue. Umas dez. Umas cem. Sempre à espera do dia em que a máquina libertaria os homens para o lazer.

Esse dia pode estar mais próximo do que imaginamos. Derek Thompson, na revista “The Atlantic”, revela alguns números: em 2013, a Universidade de Oxford previu que as máquinas, daqui a 20 anos, farão metade dos trabalhos nos Estados Unidos da América. Essa previsão, como todas as previsões, tem um valor relativo: se a história ensina alguma coisa é que por cada trabalho destruído haverá sempre um trabalho inventado. Melhor: inventado e imprevisto pelo horizonte estreito do nosso presente.

Mas existem sinais de alguns limites: o número de empregos disponíveis (e tradicionais) começou a escassear nas últimas gerações, sobretudo para homens e jovens graduados. Porque a tecnologia faz mais e os homens têm cada vez menos para fazer.

O meu coração hedonista rejubila com a notícia, partindo do pressuposto de que as máquinas também irão gerar recursos capazes de sustentar a minha nostalgia pela vadiagem.

Mas depois, como uma Cassandra moderna, Derek Thompson relembra o “paradoxo do trabalho” que define a nossa miserável condição: toda gente amaldiçoa as horas passadas no escritório; mas, ao mesmo tempo, toda gente amaldiçoa as horas passadas em casa. Sem trabalhar, a maioria perde um “sentido” para a vida que não consegue encontrar em mais nada.

E não me refiro a situações dramáticas de desemprego, que jogam em outro campeonato. Falo de gente que enriqueceu, ou se aposentou, e que em teoria poderia festejar a liberdade com algumas garrafas de ociosidade.

Puro engano. Um mundo onde as máquinas trabalham e os homens têm tempo livre (e remunerado) soa mais a distopia do que a utopia. Será que a infame frase “o trabalho liberta” esconde uma verdade profunda?

Admito que sim. Mas também admito que o “paradoxo do trabalho” é o resultado de uma sociedade enlouquecida pelo próprio trabalho.

Quando todas as áreas da vida estão invadidas por prazos a respeitar, e-mails para responder, fins de semana para arruinar, filhos para ignorar, vida pessoal para adiar –enfim, sobra pouco espaço para descobrir o que gostamos de fazer quando não estamos a fazer nada.

No seu ensaio sobre a preguiça, Lafargue afirmava que os nossos antepassados greco-latinos sabiam cultivar o ócio porque tinham tempo; e tinham tempo porque, escusado será dizer, havia escravos obrigados a trabalhar por eles.

Hoje, não temos tempo nem escravos porque somos nós os escravos das nossas vidas. E quando nos vemos livres das correntes, nem sabemos o que fazer sem elas.

Como me dizia um amigo psiquiatra tempos atrás, ele nunca sai de férias no verão porque é no verão que os casos mais graves lhe aparecem no consultório. “O tempo livre é uma das principais causas de depressão”, disse-me ele. Perante isto, que fazer?

No artigo, Derek Thompson levanta o véu: o nosso sistema de ensino, e sobretudo o ensino universitário, transformou-se numa espécie de fábrica para produzir trabalhadores.

Mas talvez não fosse inútil que, no meio da matemática ou do português, houvesse um curso especial para ensinar aos escravos de amanhã os versos mais citados e menos praticados do meu conterrâneo Fernando Pessoa: “Ai que prazer / Não cumprir um dever, / Ter um livro para ler / E não o fazer!”.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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