6:42Respirando por aparelhos

por Ivan Schmidt 

O legado histórico do Partido dos Trabalhadores – se é que existe um – já em fase adiantada de corrosão pelo azinhavre dos desvios éticos e morais, acaba de receber uma marretada mortal desferida por ninguém menos que seu presidente de honra, Luiz Inácio Lula da Silva. “Hoje a gente só pensa em cargo, em emprego e em ser eleito. Ninguém mais trabalha de graça”, disparou em conferência pronunciada ao lado de Felipe Gonzalez, ex-primeiro-ministro espanhol, em evento recente promovido pelo Instituto Lula, em São Paulo.

A declaração de Lula, que poucos dias antes havia dito num encontro com um grupo de padres, que em termos de credibilidade o PT está abaixo do volume morto, e Dilma e ele no volume morto, em apropriada alusão aos níveis preocupantes do volume d’água nos reservatórios das principais usinas hidroelétricas, veio num momento de perplexidade geral pela ausência de sintonia entre o governo da República e a efetiva realidade nacional, fato que se agrava pela ação ineficaz da bancada federal do PT, hoje praticamente neutralizada pelo rolo compressor do PMDB e outras legendas da base governista.

Quem dá as cartas no Congresso Nacional, e a constatação é óbvia, sãos os presidentes Renan Calheiros e Eduardo Cunha, do Senado e Câmara dos Deputados, que em algumas circunstâncias fazem questão de se sobrepor à função delegada pela presidente Dilma Rousseff ao vice-presidente Michel Temer, qual seja a articulação entre governo e partidos da base.

Renan e Cunha, hábeis manipuladores das bancadas do PMDB em ambas as Casas, com a adesão oportunista das pequenas legendas, têm imposto sucessivas derrotas ao governo, obrigando Dilma a exercer o poder de veto que, em alguns casos, desgastam ainda mais sua imagem já em acelerado plano descendente.

A situação vivida atualmente pelo PT, na verdade, começou a germinar nos meses iniciais do primeiro mandato de Lula, quando o ex-deputado Roberto Jefferson resolveu “entregar” na rumorosa entrevista à jornalista Renata Lo Prete, da Folha de S. Paulo, a escandalosa trama que ele próprio definiria como “mensalão”.

Feitas as investigações e a apuração das responsabilidades, tempos depois o procurador geral da República de então, ao aceitar as denúncias, fez igualmente um lapidar juízo de valor que remetia a autêntica formação de quadrilha para a apropriação de recursos públicos, cujo principal mentor teria sido o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu de Oliveira e Silva.

O PT, do ponto de vista de sua ação programática e das diretrizes que norteavam seus estatutos e outros documentos de fundação, já não era o mesmo partido idealizado pelos pioneiros, entre eles, imagino, o próprio Lula.

Nascida do movimento sindical do ABC paulista, especialmente do Sindicato dos Metalúrgicos de S. Bernardo do Campo, presidido por Lula, a ideia da criação de um partido formado por proletários ganhou corpo entre insignes intelectuais brasileiros do porte de Apolônio de Carvalho, Mario Pedrosa e Sérgio Buarque de Holanda, além de Antonio Candido, Paul Singer, Lélia Abramo, Perseu Abramo e tantos outros.

Descrevendo a cena ocorrida no Colégio Sion, quando da assinatura da ata de fundação do PT, o intelectual marxista Paul Singer (como eram tantos outros), hoje secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho, um dos raros fundadores a resistir no governo federal, em homenagem póstuma prestada a Mario Pedrosa pela Fundação Perseu Abramo (órgão de estudos políticos do PT) e Universidade Estadual PauIista (Unesp), em 2001, afirmava: “E Deus quis que Mario Pedrosa estivesse vivo, já com 80 anos, quando fundamos o PT. Eu lembro, muitos de vocês estavam lá, a comoção no Colégio Sion quando os três velhinhos – Apolônio de Carvalho, Mario Pedrosa e Sérgio Buarque de Holanda – foram convidados a ser os primeiros a assinar o livro de fundação do PT”.

Singer faria, ainda, um adendo: “Foi um momento certamente de profunda satisfação para o Mario e para muita gente mais, uma maneira de colher um pouco daquilo que ele, junto com seus companheiros, semeou a vida inteira”.

Avaliemos a importância de comparar facetas diversas desse mesmo partido e, sobretudo, o contraste ideológico que se estabeleceria entre os primeiros a conceber a criação de um genuíno partido de trabalhadores e os que dele se adonariam anos depois. Singer lembrou que na ocasião Pedrosa “fez um extraordinário apelo à superação do sectarismo”, sugerindo que “ele percebeu com muita lucidez que o PT teria que superar uma enorme heterogeneidade, resultante das muitas correntes que desaguaram no partido e, se isso não fosse possível, o partido provavelmente seria paralisado pelas lutas internas”.

Numa carta que escreveu a Lula, então líder sindical e principal proponente da criação do PT, entusiasmado pela ideia Pedrosa concluiu: “Cunha-se assim com a naturalidade das coisas elementares o partido que a consciência proletária em que você e seus companheiros estão imbuídos. Isso é penhor do futuro: fruto das tradições dos mestres nutrida do sangue dos nossos heróis proletários. Sem a libertação do movimento trabalhista é inútil falar-se em liberdade, democracia ou socialismo”.

Lula que citou textualmente o parágrafo na homenagem póstuma a Mario Pedrosa, certamente o esqueceu com as avalanches do mensalão e do petrolão, o funesto alicerce do maquiavélico projeto de poder, embora tivesse a humildade para reconhecer que Mario “foi uma das pessoas que nos ajudaram a acreditar que era possível criar um partido”. O grande intelectual e o contributo à germinação da semente petista também foram esquecidos por “líderes” que se tornaram milionários da noite para dia, como se tivessem o dom da multiplicação.

Tantos intelectuais que sobreviveram a Mario Pedrosa, aos poucos foram abandonando por inconformismo, decepção e logro um barco que dava mostras de confiar o leme a comandantes despreparados. Não sabemos qual teria sido a reação de Pedrosa, vivo fosse, diante do moribundo que respira por aparelhos.

2 ideias sobre “Respirando por aparelhos

  1. Pedreiro

    “Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares se faz por uma minoria privilegiada. Essa minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e pôr-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza humana.”
    Mikhail Aleksandrovitch Bakunin.
    1814 – 1876.

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