por Mario Sergio Conti
Não tem cabimento que a neve caia sobre os brasileiros. Nem que Copacabana esteja deserta num meio-dia de sol. Ou que uma paulistana seja russa e, ainda por cima, Anna Kariênina. São coisas que acontecem só no cinema. E são vistas por culpa de Paulo Emílio Sales Gomes.
Há muitas luas, na Escola de Comunicações e Artes, ele tinha um poder de persuasão que mesclava argúcia e graça. Esguio e com gestos suaves, era o único alinhado entre batas e sandálias, num tempo em que ainda não se inventara o pente. Abria fácil um riso que seduzia pela alegria.
Assim como quem não quer nada, Paulo Emílio repetia em sala de aula suas máximas prediletas: “O melhor filme estrangeiro é pior do que o pior filme nacional”; “O cinema brasileiro é o único que pode nos expressar”; “O espectador só aparece num filme se ele for nacional”.
O raciocínio implicava em considerar Aníbal Massaini Neto superior a, digamos, Antonioni, mas ele não se dava por achado. Viu virtude até em “A Super Fêmea”: a atuação de Adoniran Barbosa. Embora não descurasse do estético, a crítica de Paulo Emílio era política. Ela se fundava numa categoria: o nacional, em que se dava a dialética entre ocupantes e ocupados.
Por essas e por outras, alguns adquiriram o hábito de assistir a todos os filmes nacionais que passam. Para aquilatar a quantas anda a formação nacional. Não é fácil. Com frequência, o hábito vira vício. Ou tara. Ou condescendência, que ajuda a jugular os engulhos.
Paulo Emílio dizia também que o subdesenvolvimento não é um estágio a ser vencido, mas um estado permanente, um pântano. Os filmes nacionais ora em cartaz comprovam a afirmação em toda a sua crueldade.
Porque agora os lançamentos são permanentes e envolvem dinheiro grosso. Há diretores, roteiristas, atores e técnicos de nível. O público vê os filmes. Mas o cinema brasileiro segue bronco, pobre, desengonçado.
“A Estrada 47”, o primeiro filme de guerra nacional desde a invenção do cinema, tem tudo direitinho: capital condizente, tecnologia atualizada, boa produção, interpretações razoáveis, paisagens italianas (o roteiro é confuso, mas, com perdão pela condescendência, deixa para lá). Tem até neve. E é apenas o trilionésimo filme de guerra americano. O melhor de “A Estrada 47” são as poucas cenas com pracinhas da FEB de verdade.
“Entre Abelhas” tem como premissa o desaparecimento, paulatino e misterioso, das pessoas que vivem ao redor do personagem principal. Novamente, a carpintaria segue a cartilha do cinema dominante. Como o filme se passa no Rio, o Brasil serve tão somente de cenário para um enredo que tem menos a dizer até que “Sorria, Você Está Sendo Filmado”.
De nacional, “Entre Abelhas” tem só a agitação sem propósito entre drama e comédia. Fábio Porchat faz Bruno, o hiperexcitado protagonista, com o mesmo histrionismo que emprega no Porta dos Fundos. Não sabe onde por as mãos quando tem que se aquietar por cinco segundos.
“Anna K.” cabe noutra categoria. Dirigido pelo pintor José Roberto Aguilar, não está de olho no grande público. Mas é um filme de pintor no mau sentido: privilegia as imagens em detrimento da narrativa. É também pedante (o título ecoa Anna O., a histérica de Freud); torna Tolstói incompreensível, divaga às tontas e não chega a lugar nenhum.
Ainda assim, um filme brasileiro falado parte do tempo em russo (com legendas) tem um quê amalucado que o faz simpático. Os desempenhos de Leona Cavalli e de Vadim Nikitin, que recita com brio Pushkin e Pasternak no original, compensa algo da barafunda de “Anna K.”.
Em matéria de filmes brasileiros, é o que há. É de se perguntar o que Paulo Emílio Sales Gomes diria deles, e dos rumos da deformação nacional. Talvez abrisse seu vasto sorriso.
*Publicado na Folha de S.Paulo