por Homero Marchese
“Aí nasce e se desenvolve papel essencial à liberdade de expressão, devendo inexistir qualquer censura à imprensa, trate ou não com os caudatários do poder público ou privado; o direito à informação é um direito fundamental e compõe o núcleo formativo da cidadania.” (Luiz Edson Fachin)
Em um dia de março de 2001, Luiz Edson Fachin fez justiça. Emergindo entre 300 estudantes de Direito que lotavam o primeiro andar da Universidade Federal do Paraná, Fachin subiu em uma cadeira e decretou o fim do trote que se aplicava aos novos alunos.
Professor titular de Direito Civil e então Diretor da Faculdade, Fachin disse algo sobre a indignidade da medida, a inadmissibilidade do trote em toda a universidade e lembrou aos perpetradores que já os advertira da proibição.
Tido como vilão pelos estudantes veteranos, Fachin foi silenciosamente festejado como herói pelos cerca de 90 calouros, que puderam descer as escadarias do prédio e resgatar seus sapatos na praça Santos Andrade, para onde haviam sido arremessados.
Foi a primeira vez que vi Fachin, e, como aluno do primeiro ano, a impressão não poderia ter sido melhor. Teria a oportunidade de conviver com ele pelos próximos cinco anos do curso, quatro deles dentro de sala de aula.
Herói ou vilão?
Na próxima terça-feira, dia 12 de maio, Fachin deverá ser sabatinado pelo Senado. A instituição confirmará ou não a sua indicação ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Nomeado ao cargo pela presidente Dilma Rousseff, Fachin tem recebido o apoio de muitos juristas, senadores e cidadãos brasileiros, que nele veem preenchidas com folga as qualidades do “notável saber jurídico” e da “reputação ilibada” exigidos pela Constituição Federal.
A nomeação de Fachin, contudo, também tem gerado uma reação inédita em parte da imprensa, do Senado e da opinião pública do país. Por conta de sua simpatia ao governo petista (manifestada inclusive em um pedido público de votos para Dilma em sua primeira eleição), seus escritos de ideologia esquerdista e um passado profissional controvertido como Procurador do Estado do Paraná, o nome de Fachin enfrenta resistência.
Herói ou vilão: é assim que Fachin vai ao Senado no próximo dia 12. Sua sabatina promete, e o fato – como indicamos neste texto – precisa ser comemorado, pois indica um amadurecimento político do país.
De qualquer forma, é preciso definir qual perfil, afinal, melhor corresponde a Fachin, e ao final do curso de Direito acredito ter obtido mais elementos para fazê-lo.
Antes de tudo, Fachin é um ótimo professor. Seu maior mérito é a didática em sala de aula: Fachin é claro, organizado e dispõe de uma oratória comparável a de poucos profissionais. Estudioso, Fachin domina o assunto que ministra e ocupa a cátedra de Direito Civil da UFPR com mérito inegável.
No trato pessoal, o retrospecto de Fachin também é amplamente positivo: Fachin é cordial e extremamente respeitoso. Em seus quatros anos como Diretor da Faculdade, Fachin agiu de forma democrática e justa com alunos, professores e funcionários.
Todas essas qualidades fizeram de Fachin um dos docentes homenageados por nossa turma na conclusão do curso, em 2006. Curiosamente, tive a oportunidade de comparecer a uma nova formatura do curso em 2015 e lá estava Fachin, de novo, como um dos homenageados. Suas qualidades como professor, portanto, parecem não envelhecer.
De outro lado, a atuação de Fachin na Faculdade de Direito da UFPR também merece ressalvas.
Líder inequívoco de uma geração de professores e acadêmicos, Fachin exerceu influência decisiva para a virada do curso à esquerda.
No Direito, a esquerda manifesta-se por quatro características básicas: 1- a defesa de um ceticismo cognitivo que relativiza o alcance de verdades; 2- a adoção de uma visão de mundo que divide a população entre opressores e oprimidos; 3- a compreensão e a utilização do Direito como uma ferramenta de transformação da realidade; e 4- a advocacia de uma maior atuação do Estado na sociedade.
Todas essas características são abundantes na Faculdade de Direito da UFPR.
Depois de anos de seleção de docentes com ideário parecido (e agora também de estudantes, conforme veremos no capítulo sobre a turma de alunos do MST), o curso de Direito da UFPR é hoje, com algumas e importantes exceções, um espaço consagrado do esquerdismo, em que professores e acadêmicos com pensamentos semelhantes encontram um ambiente receptivo às suas ideias – e delas compensadoras na forma de bolsas de pesquisa e aprovações nos cursos de mestrado e doutorado.
Como o ceticismo cognitivo e o uso ideológico do Direito costumam ser trágicos para a ciência, o resultado é uma produção intelectual que, embora se anuncie como sofisticada, é na realidade bastante confusa e pobre. Escreve-se muito, mas o resultado apresenta reduzida relevância intelectual.
É o que explica, por exemplo, como alguém com a enorme capacidade oratória de Fachin pode apresentar tamanha dificuldade para expressar-se por escrito (veja um exemplo aqui).
A combinação teórica de ceticismo cognitivo e ideologia de esquerda também resulta na formação de uma comunidade acadêmica que prestigia um alinhamento de pensamentos, e na qual os portadores de concepções distintas sobre Direito e filosofia são mal vistos e tem pouco espaço. Nem é preciso dizer o dano que as medidas causam à universidade, cuja própria ideia, aliás, pressupõe a constituição de um ambiente de pluralidade de crenças.
A propósito, o conforto teórico de que boa parte dos membros da comunidade acadêmica da UFPR (do passado ou do presente) goza há muitos anos talvez explique o seu espanto diante da rejeição de fração significativa da população brasileira ao nome de Fachin.
Mal acostumados com uma linha única de pensamento, os membros da UFPR parecem dar-se conta pela primeira vez que, afinal, há muito mais entre o céu e a terra do Direito brasileiro do que poderiam imaginar. Como se acordassem de um sonho, muitos deles constatam pela primeira vez que a média da população brasileira tem crenças bastante diferentes das suas.
É curioso, por fim, que o processo de aprovação de Fachin pelo Senado dependa hoje decisivamente do senador Álvaro Dias, do PSDB/PR.
Relator do processo de nomeação de Fachin na Casa e seu principal apoiador, Álvaro Dias é o tipo de parlamentar que a maioria da comunidade acadêmica do curso de Direito da UFPR rejeitaria de imediato, por suas convicções, postura e votos no Congresso (e que continuará rejeitando, independentemente da sabatina do próximo dia 12).
Há um grande retrospecto favorável à confirmação de Fachin pelo Senado: até hoje no Brasil, apenas 1 indicação presidencial ao STF foi rejeitada pela Casa Legislativa. E isso ocorreu há mais de 110 anos, no governo do presidente Floriano Peixoto.
Em 1893, Floriano nomeou ao STF Cândido Barata Ribeiro, um médico. Embora contasse com experiência na Administração Pública, Barata Ribeiro foi rejeitado por falta de “notável saber jurídico”.
Historicamente, a sabatina dos indicados aos STF tem sido encarada pelo Senado como um ato meramente formal.
O fato, em boa medida, é explicado pela grande influência que o presidencialismo de coalizão nacional costuma exercer sobre os parlamentares mais sensíveis à oferta de cargos e benesses pelo Executivo. Também parece ter fundamento no célebre senso de acomodação brasileiro, refletido no desejo parlamentar de não se indispor com aquele que pode vir a julgar seus atos e condutas. Por conta disso, aliás, muitas sabatinas no passado transformaram-se em verdadeiras sessões de homenagens ao candidato à vaga.
As últimas sabatinas dos indicados ao STF, contudo, parecem ter alterado um pouco essa lógica, o que deve ficar definitivamente confirmado no próximo dia 12.
A expectativa pela sabatina de Luiz Edson Fachin aumentou muito principalmente em virtude do enorme destaque que o STF passou a exercer na vida pública nacional nos últimos anos.
Nos últimos anos, o Tribunal realizou julgamentos que acabaram acompanhados diariamente pela população, como o mensalão. Além disso, passou a ser comum o exercício de um certo ativismo judicial pela Corte (por ativismo judicial entende-se a prolação de decisões que não se limitam a interpretar regras constitucionais, mas que se aproximam da criação dessas tais normas. São exemplos as recentes decisões do STF sobre aborto de fetos anencéfalos, casamento entre pessoas do mesmo sexo, a extensão da regulamentação do direito de greve para servidores públicos, a extensão dos efeitos erga omnes das decisões do Tribunal ao controle difuso de constitucionalidade, etc.)
Tanto o Senado quanto o resto da população brasileira parecem ter se dado conta da enorme importância que o STF assumiu na definição do destino do país.
Nossos parlamentares e cidadãos também parecem ter se dado conta que a escolha dos Ministros do STF deve caber, em última análise, à própria população, a fim de que os 11 membros da Corte, que não são eleitos, não decidam de forma contrária ao que a sociedade brasileira pensa e deseja para seu país.
Nos EUA, em que o papel decisivo da Suprema Corte foi percebido desde a sua criação, há mais de dois séculos (o caso mais célebre da Suprema Corte americana,Marbury vs. Madison, tem quase a mesma idade do Tribunal, instituído em 1789), a sabatina dos indicados à Corte é marcada por enorme envolvimento da população, da imprensa e do Senado, que debatem insistentemente a adequação do indicado ao cargo.
Por conta disso, a rejeição de candidatos pelo Senado americano não é algo raro.
Até hoje, por exemplo, 12 nomeações de juízes da Suprema Corte foram rejeitadas pelo Senado dos EUA e outras 7 foram retiradas pela Presidência antes que a Casa Legislativa pudesse rejeitá-las (além disso, mais 3 indicações foram adiadas indefinidamente pelo Senado, sem que o candidato tenha sido confirmado depois, o que equivale a verdadeiras rejeições). Desde 1968, 3 nomeações à Suprema Corte foram rejeitadas pelo Senado dos EUA e 3 foram retiradas pela Presidência (a última delas em 2005, pelo Presidente George W. Bush).
Por lá, entende-se que, durante a sabatina, cabe ao candidato responder todas as perguntas sobre a sua história profissional e dizer exatamente o que pensa sobre o que lhe for perguntado. O objetivo é permitir que os senadores e a população possam avaliar a sua conveniência e adequação ao cargo.
Sob pena de colocar em risco a ratificação de seu nome, o candidato não pode recusar-se a enfrentar determinado assunto proposto – ainda que alegue ter de decidi-lo posteriormente, como membro da Corte. Entende-se que a sabatina é justamente o momento em que o indicado deve se manifestar sobre o tema, cabendo aos senadores zelar para que isso aconteça.
Enfim, assim como ocorre nos EUA, a sabatina no Brasil tem que ser para valer. E basicamente isso significa que ela precisa pressupor a possibilidade de rejeição do candidato sabatinado.
Eu não acredito nem torço pela rejeição da nomeação de Fachin (acredito mesmo que Fachin pode ser um bom Ministro, justo e equilibrado, desde que evite valer-se de boa parte dos pressupostos teóricos que sustentou ao longo da carreira). Penso que o retrospecto quase absoluto de confirmação de Ministros pelo Senado prevalecerá. De qualquer forma, a sabatina do próximo dia 12 promete, pois tem tudo para marcar uma nova era nas escolhas dos Ministros do STF pelos cidadãos brasileiros.
Pergunte ao Fachin
O alcance da jurisdição constitucional
Como cidadão brasileiro, gostaria de ver formuladas algumas perguntas ao candidato Luiz Edson Fachin em sua sabatina. A primeira delas diz respeito à sua concepção de jurisdição constitucional.
Basicamente, gostaria de saber de Fachin como ele encara o papel do STF na aplicação da Constituição: para ele, o Tribunal deve limitar-se a interpretar a Constituição ou, em determinados casos, pode ir além e criar o Direito no julgamento?
A imprensa tem noticiado que Fachin, em peregrinação pelo Senado, tem tranquilizado os senadores mais arredios à sua nomeação afirmando ser um “legalista (boa parte do ideário presente em suas obras, assim, seria apenas charme para que elas fossem bem aceitas pela comunidade acadêmica brasileira).
Perdoe-me, mas Fachin é tudo menos legalista, e o rótulo certamente lhe causaria repulsa caso não fosse empregado para beneficiá-lo.
“Legalista”, “positivista”, “conservador”, todos esses termos são rejeitados com ênfase por quem parte de uma visão esquerdista do Direito como a explicitada acima. Se o Direito deve transformar a realidade, a insuficiência do texto legal não pode ser desculpa para a contenção da atividade judicial. Fachin tem centenas de escritos em que defende uma postura mais ativa dos juízes no processo judicial. Além disso, é célebre sua afirmação de que uma Constituição não nasce como tal, mas se forma ao longo do tempo.
Cabe a Fachin, portanto, explicitar como encararia os limites de sua atuação como Ministro do STF.
A principal dificuldade de Fachin na sabatina do próximo dia 12 envolverá seu passado como Procurador do Estado Paraná. Conforme noticiou a imprensa, Fachin ocupou o cargo entre os anos de 1990 e 2006. No mesmo período, Fachin advogou em seu escritório privado e foi professor da UFPR, além de ter sido diretor da instituição entre os anos de 2000 e 2004.
O primeiro problema despertado pela situação foi objeto de uma nota técnica expedida pela Consultoria do Senado na semana passada: por ter assumido o cargo de Procurador no Paraná depois da promulgação da Constituição do Paraná, em 1989, Fachin não poderia ter exercido advocacia privada. O exercício das duas funções ao mesmo tempo, portanto, teria sido ilegal, o que deverá ser arguido ao candidato na próxima terça-feira.
Mas há um segundo problema envolvendo a acumulação das funções por Fachin, que, embora seja ainda mais sensível que o primeiro, tem passado incólume à discussão. Trata-se da eventual compatibilidade de horários entre todas as atividades exercidas pelo candidato.
Ora, se Fachin ministrava aulas, advogava em seu escritório, foi diretor do curso de Direito da UFPR e ainda era Procurador do Estado, pergunta-se como pôde ter cumprido todos os horários funcionais a que era sujeito. Em relação à atividade de Procurador do Estado, por exemplo, pergunta-se como Fachin a exerceu.
Por acaso, Fachin dava expediente diário nas instalações da Procuradoria? Ou Fachin apanhava sua cota de processos e os levava a seu escritório ou residência para analisá-los de lá? Em seu escritório ou residência, Fachin trabalhava pessoalmente e com a atenção devida sobre cada um dos processos egressos da Procuradoria? A que horas fazia isso, se ainda devia ministrar aulas, dirigir a faculdade de Direito e atender aos clientes de sua advocacia privada? Fachin trabalhava nos processos da Procuradoria durante o dia, à noite, de madrugada, nos finais de semana? Por quantas horas semanais? Como Ministro do STF, Fachin autorizaria os servidores públicos do país a fazer o mesmo?
A situação em que Fachin se encontra é tão embaraçosa que é possível entender por que o candidato removeu a passagem pelo Procuradoria do Estado de seu currículo lattes.
No passado, a tática foi empregada com sucesso por outro candidato ao STF, Luis Roberto Barroso, que, antes de assumir o cargo de ministro da Corte, foi procurador do Estado do Rio de Janeiro, advogado e professor da UERJ.
A cumulação indevida de cargos públicos é um dos problemas mais sérios da Administração Pública no país e precisa ser combatida duramente. Enquanto um só agente é remunerado por diversas fontes públicas – recebendo, por vezes, um salário total altíssimo e garantindo uma aposentadoria correspondente –, a população sofre com serviços mal prestados ou prestados pela metade.
A situação também implica em um paradoxo moral que precisa ser definitivamente exposto à população. No campo das universidades públicas, por exemplo, não é rara a figura do professor que, após receber contracheques de duas fontes públicas distintas, ingressa em sala de aula para protestar contra a injustiça da sociedade brasileira e pedir reformas no Estado. A hipocrisia não tem limites.
Há alguns anos, outro professor do curso de Direito da UFPR, o atual Diretor da Faculdade, Ricardo Marcelo Fonseca, enfrentou problemas por conta de uma suposta cumulação indevida de funções. Fonseca sofreu processo administrativo instaurado pela União por manter escritório privado de advocacia e, ao mesmo tempo, acumular os cargos públicos de professor da universidade e procurador federal.
Sobre o texto que supostamente provaria a incapacidade de escrever do Fachin, tenho a dizer duas coisas.
Primeiro: o texto, na verdade, não é dele, é um resumo feito por alguém. É só ler até o final: ” P.S.: O presente texto sumaria as ideias do autor contidas na Conferência de abertura da V Conferência Estadual dos Advogados do Paraná, OAB/PR, 13 de agosto de 2014.”
Segundo: é um absurdo e uma ignorância, pois o Fachin, muito antes de ser advogado, professor e possível ministro do supremo, é um talentoso escritor, respeitadíssimo entre seus pares, co obras publicadas desde os meados dos anos 1970.
Dê uma pesquisada.
renato, no final do texto tem o link do marchese. envie para lá seu comentário. de qualquer forma, obrigado. abraço. saúde.