por Ruy Castro
Querida leitora, se alguém a convidar a “ir lá em casa para ouvir uns blues da Billie Holiday”, não vá. É golpe. Billie Holiday nunca gravou um blues na vida, exceto, talvez, “Billie’s Blues”. O blues é um formato musical primário e repetitivo, bom de ouvir desde que em pequenas doses –assim como seu primo brasileiro, o partido-alto. O repertório de Billie se compunha de canções populares, comerciais, quase todas de alta qualidade. As que não eram, ela as tornava de alta qualidade.
Billie também não era uma cantora “de jazz”, no sentido de detonar a melodia e passar a letra no moedor. Ella Fitzgerald e Anita O’Day faziam isto; Billie, não. Sarah Vaughan, Carmen McRae e Peggy Lee, também não –e alguém dirá que Sarah, Carmen e Peggy não eram cantoras de jazz? Enquanto não se chega a um acordo sobre o que seria uma cantora “de jazz”, fica combinado que Ella, Anita, Billie, Sarah etc. eram grandes cantoras populares, só que com um sotaque jazzístico.
Muitos adoram Billie porque ela cantava “com sentimento” e “vivia tudo que cantava”. Em termos, não? Basta ouvir a caixa de dez CDs da Verve, “The Complete Billie Holiday 1943-1959”. Sua gravação de “God Bless the Child”, de 25 de agosto de 1955, por exemplo, exigiu quatro takes com várias interrupções e muita conversa com os técnicos. São 20 minutos gravados de idas e vindas. E, a cada recomeço, cantava com o mesmo “sentimento”. Na verdade, Billie interpretava uma Billie Holiday que “vivia tudo que cantava”.
E, estranhamente, admira-se Billie –assim como Charlie Parker, Miles Davis e Chet Baker– mais por sua relação com a droga do que por sua arte. Mas imagine as alturas a que teriam chegado sem os estragos pessoais e profissionais que a droga lhes causou.
Billie, 100 anos nesta semana, morreu aos 44, em 1959. Vida curta, arte eterna.
*Publicado na Folha de S.Paulo