por Yuri Vasconcelos Silva
Acordou e ainda não podia acreditar. Era sua primeira noite naquela casa esquisita. Estava em um quarto decente, bem maior que a meia água que rangia ao vento e caminhar, onde seus filhos e pais moravam. Ela já tinha trabalhado em algumas casas ricas de gente metida a bacana, mas nenhuma era daquele jeito. Além do quarto com tamanho suficiente para respirar, ler e ver a novela, existia um banheiro e uma escada exclusiva para ela. Uma escada parecida com uma concha, torcida e suave para conectar sua suíte ao resto da casa, onde exercia seu ofício. Nas mansões e palacetes anteriores, tudo era cheio de pequenas preciosidades entalhadas em portas, mármores e objetos liliputianos. Era trabalhoso esfregar tantos meandros encaracolados, tirar pó de baixos e altos relevos portentosos. Os patrões reiteravam o cuidado que ela deveria ter com aquilo que outrora esteve ou se inspirara na Europa. Eram deco, nouveau, neoclássico. Ela achava bonito, parecia tão caro e exclusivo… Nesta casa é tudo muito limpo, reto, ortogonal. Uma casa pelada, sem roupa e jóias. Ela suspirava alívios ao medir seu trabalho em limpar superfícies tão desobstruídas. O serviço era mais rápido.
Se as janelas são os olhos da alma construída, então este lugar não pode esconder segredos. Toda parede tem olhos esbugalhados. As vezes tão grandes que parece que são as janelas que contêm algumas paredes. Ela enxerga a rua o tempo todo. O jardim também. Sem cortinas, ela pressente que a rua e os passarinhos do jardim assistem ao seu vai-e-vem, bailando pela casa despojada de móveis, em cima da enceradeira louca sobre os tacos. As salas para estar com família e para comer com todos eram integradas, unidas pelo mesmo piso e um teto tão alto que ela precisava chegar ao periclitante último degrau da escada esticada para espanar as teias dos cantos. A luz tem um quê de relógio. Ela sempre sabia das horas só de olhar para a posição das luzes e sombras dentro da casa. A luz invadia cada centímetro dos espaços, vagarosa durante o dia, varrendo com seu calor aconchegante, girando as sombras como um ponteiro. No inverno lançava braços iluminados mais longos; no verão, eram curtos e quentes. Se ela tinha sua própria escada para chegar ao seu quarto, seus patrões tinham uma rampa. Era o que mais estranhava, pois pensava que era coisa de departamento público. Rampas? A doméstica conjecturava porque os patrões não tinham terminado a casa, colocado todo aquele ornamento que as casas vizinhas exibiam. Esta aqui nem telhado tinha. Talvez eles não fossem tão ricos.
Ela ficou na casa por quase 30 anos. Antes de partir perguntou para o patrão quem tinha bolado aquela caixa de viver. Ele respondeu que seu pai contratara um arquiteto, Vilanova Artigas. Ela então perguntou se ele fez outras deste jeitão. Ele respondeu que sim, muitas outras. Ela riu e mandou um recado para o arquiteto. Se encontrasse Artigas novamente, avisasse que suas casas são as mais gostosas de limpar. E então ela seguiu seu caminho tranquilo, pela rua da Paz.
*Apesar de tratar-se de um conto fictício, a Casa Bettega existe, próxima ao Mercado Municipal, na Rua da Paz 479. A obra foi tombada como patrimônio da Arquitetura Moderna de Curitiba.
*O arquiteto paranaense João Vilanova Artigas completaria 100 anos em 23 de junho próximo.
*Yuri Vasconcelos Silva é arquiteto