por Ivan Schmidt
“A questão central é a seguinte: estamos na segunda etapa do combate a mais grave crise internacional desde a grande depressão de 1929”. Assim iniciava o editorial do Estadão de terça-feira (10), aproveitando uma frase do pronunciamento da presidente Dilma Rousseff no Dia Internacional da Mulher.
O editorial expressa o pensamento ultraconservador da família Mesquita, dona do jornal mais importante da América do Sul, cuja aversão a tudo que cheira a populismo e manifestações esquerdofrênicas é histórica. Assim como é histórico o compromisso do jornal com a verdade. Daí não haver novidade em classificar como “estarrecedora” a desculpa com que “Dilma Rousseff jogou no lixo todos os indicadores econômicos e se eximiu de qualquer responsabilidade pela grave crise nacional”.
Confesso que minha sensação ao ouvir a frase na TV foi sentir o assoalho desaparecendo debaixo da cadeira e eu estivesse sendo projetado num torvelinho assustador, diante de tamanha ofensa à inteligência dos mortais comuns.
Não foi por outro motivo, penso, que enquanto Dilma proferia seu rosário de afirmações desconexas e destituídas de verdade, moradores de várias capitais promoviam ruidoso panelaço que a muitíssimos lembrou a manifestação dos caras pintadas naquele famoso Sete de Setembro, quando o então presidente Fernando Collor, um dos coveiros ainda vivos da democracia brasileira, suplicou que o povo não o deixasse só e saísse às ruas no Dia da Independência, em sua defesa, vestindo verde e amarelo. Deu no que deu.
O governo acusou já no dia seguinte o impacto do direto na mandíbula, e como um lutador a ponto de desabar (moralmente já desabou), valeu-se da voz da própria presidente ou de seus operadores políticos que sacaram de seu curto repertório a desculpa chinfrim do “terceiro turno”, argumento que não serve mais nem para engambelar a velhinha de Taubaté.
Em resumo, sem alternativa mais coerente o governo lançou mão daquilo que nossos avós chamavam de conversa para boi dormir e, pior, ordenou que se reescrevesse o libreto da ópera bufa em que a oposição, ao invés de legitimar a função de criticar, fiscalizar e questionar o governo, obrigatoriamente, tem que se ater ao mesquinho papel de mau perdedor.
Tenho a pérfida impressão, afinal não sou nenhum santo, que poderíamos mudar a ordem dos dados da equação para afirmar que é o desarvorado governo Dilma que se comporta, dois meses depois da posse como “mau ganhador”, pois até esse momento foi incapaz de fornecer à sociedade a mínima justificativa das falácias utilizadas para vencer a eleição ou, sequer, emitir um sinal confiável de que é mesmo governo, sabe o que fazer para recuperar a solidez da economia e, não meramente passar o tempo embaindo a população com solucionáticas dignas do Barão de Itararé.
Em coletiva à imprensa poucas horas depois do panelaço – na quarta-feira Dilma foi vaiada em São Paulo e domingo tem mais – a presidente deitou falação sobre o impeachment, fantasma que ronda os palácios governamentais do Cerrado. Com seu domínio impecável da língua portuguesa, Dilma informou à enorme seita liderada por Eremildo, o idiota, que “terceiro turno das eleições para qualquer cidadão brasileiro não pode ocorrer, a não ser que você queira uma ruptura democrática. Se quiser uma ruptura democrática, eu acredito que a sociedade brasileira não aceitará rupturas democráticas e acho que nós amadurecemos suficiente para isso”.
Em outra amostra inquestionável de raciocínio cartesiano, a presidente emendou uma análise típica de grandes pensadores da ciência política, ao se referir à legitimidade das manifestações pró-impeachment: “Convocar, quem convocar, convoque do jeito que quiser, ninguém controla quem convoca. A manifestação vai ter as características que tiver seus convocadores. Ela em si não representa nem a legalidade nem a legitimidade de pedidos que rompem a democracia”.
Não encontrei em Vico, Paretto, Antonio Gramsci, Max Weber, Isaiah Berlin ou Norberto Bobbio, um pensamento mais translúcido. Uma frase antológica que em minha tosca maneira de ver será imediatamente inserida nas mais respeitáveis obras do gênero.
Dirigentes do PT tiveram a petulância de afirmar que o panelaço foi “orquestração com viés golpista” organizada por setores da “burguesia e da classe média alta”, em desculpa tão ou mais estabanada que o torcicolo mental que desencavou a pérola da segunda fase da pior crise econômica desde 1929.
Para quem reclama como direito adquirido o reconhecimento de que os dois turnos da eleição já foram realizados e a vitoriosa foi a candidata petista, coisa que em sã consciência ninguém discute, é afrontosa a falta de respeito às convicções políticas, igualmente democráticas, dos milhões de eleitores que votaram contra. É pecado ter uma opinião diversa e expressá-la livremente?
Ora, se a opinião deste imenso universo populacional, cuja fração maior é formada por gente que produz riqueza e contribui para manter o governo de pé não vale nada, melhor seria para o aperfeiçoamento do bestialógico destilado em determinados círculos do poder, que o patrimônio moral e ético de formidável contingente de brasileiros fosse lançado no tubo do esquecimento do Grande Irmão, a abominável figura que domina o romance 1984, escrito pelo inglês George Orwell.
O cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas, Marco Antonio Carvalho Teixeira, em artigo no Estadão de terça lembrou que se houve espanto com a fala de Dilma, esse foi “o tom do protesto de parcela da sociedade contra Dilma Rousseff, simultâneo ao discurso presidencial. Pensar sobre o tamanho e as consequências desses protestos, que foram estimulados pelas redes sociais, mas que nem por isso tira o grau de legitimidade e espontaneidade dos mesmos, é um grande desafio”.
Bernardo Mello Franco, na Folha de S. Paulo do mesmo dia, escreveu na hiper assuntada página 2 que “concordando-se ou não com os manifestantes, Dilma Rousseff deu motivos para as vaias, o buzinaço e as paneladas de domingo” e explicou: “A presidente mentiu na campanha, nomeou um ministério que envergonhou seus próprios eleitores e sumiu na hora das más notícias. Reapareceu com um pronunciamento fraco e palavroso, sem qualquer autocrítica sobre os erros do governo”.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que é a voz mais lúcida da política brasileira, em entrevista a Eliane Cantanhêde no Estadão de terça, não hesitou ao comentar a questão do afastamento da presidente: “Impeachment não é uma coisa desejável e ninguém se propõe a liderar isso. O PT usa o impeachment para dizer que o PSDB quer, mas não é verdade. Impeachment é como bomba atômica, é para dissuadir, não para usar”.
A resenha dos jornais, sobretudo aqueles que a visão tortuosa lulopetista consigna como representantes da oligarquia dominante, facilita a tarefa de coletar opiniões sensatas que em hipótese alguma refletem a tentativa golpista abertamente insinuada pelas pitonisas palacianas.
O jornalista Fernão Lara Mesquita, escreveu no Estadão de quarta que “o que há de surrealista nesta crise é a ordem dos fatores. Não são os fatos que configuram a crise e pautam o discurso do governo, é o discurso do governo que pauta a crise e torna os fatos cada vez mais adversos”.
Fernão insiste que a crise “não é muito mais que a insana persistência na negação da crise, agravada pela última tentativa de dona Dilma de nos provar que os loucos somos nós, que o que sentimos no bolso não passa de uma invenção ‘da mídia’ e que quem vai mal não é o Brasil onde o petróleo custa o dobro, é o mundo onde o petróleo custa a metade”.
Como diria Tchekov “não é por culpa do espelho que tens a cara errada”.