21:40Família Guelmann, uma história de dor e de luz

famíliagersonguelmann

por Gerson Guelmann

Esta era minha família até 7 de fevereiro de 1965. Naquela data, numa viagem de São Paulo para Curitiba, meu pai, minha mãe e minhas duas irmãs faleceram num acidente de automóvel. Em poucos dias meu pai, Isaac, completaria 42 anos e minha mãe, Selda, 40. As meninas, Gisele e Gilce, em alguns meses fariam 12 e 9, respectivamente. Éramos 5 filhos  e ficamos os 3 homens: o mais velho, Gilberto, com quase 19, eu com 17, e o Gilson com pouco mais de 13. As circunstâncias de como se deu a tragédia, os detalhes, tudo é tão absurdo e incompreensível, que ainda hoje, 50 anos depois, prefiro não pensar em como aquilo aconteceu. Era uma manhã de domingo com pouquíssimo trânsito, tempo excelente, num trecho reto da estrada, já asfaltada, e tudo faz supor que a viagem transcorria tranquila. Minha mãe dirigia e meu pai viajava no banco do passageiro, onde lia um jornal. As meninas iam no banco de trás do automóvel, que foi esmagado por um trator de uso em obras rodoviárias. O equipamento, pesadíssimo, não estava autorizado a trafegar na estrada e deveria ser transportado por caminhão. Um defeito mecânico fez com que o operador perdesse o controle e passasse por cima do carro, cruzando a via na contramão. Em segundos e sem nenhuma possibilidade de reação, as vidas deles acabaram e as nossas mudaram para sempre. A natureza humana é incrível. Já há muito tempo tenho dificuldade para desenhar seus rostos na memória, o que me parece ser um bloqueio de defesa. Nos primeiros dias, meses e anos, a dor misturava-se à revolta, à incerteza com relação ao futuro, ao desejo de fazer o tempo retroceder para que um minuto a mais ou a menos no trajeto pudesse evitar a dor. As memórias hoje são esparsas. A mente divaga e nem sempre sei o que é lembrança ou sonho. O pensamento mais frequente é o que me faz imaginar como poderia ter sido a vida da família. Como teriam sido as vidas deles e as nossas? Eu teria continuado a estudar?  Meus pais ainda estariam vivos? Eles teriam alcançado os netos, meus filhos e os de meus irmãos, e os que as meninas poderiam ter lhes dado? E viveriam para conhecer um bisneto hoje com quase 20 anos? As vezes acho que ter passado por esse trauma não me fez diferente das outras pessoas. Não me tornei melhor ou pior do que poderia ter sido, ainda que “o homem seja o homem e a sua circunstância”, como disse Ortega y Gasset. Tive altos e baixos, momentos bons e ruins, gestos dos quais me orgulho e atitudes que me envergonharam. Por muito tempo fui autoindulgente e culpei a tragédia por minhas falhas como ser humano, marido e pai. Isso passou à custa de análise, introspecção e pela percepção de que a vida é realmente muito difícil, mas fica ainda mais dura se você não a enfrentar. Hoje me julgo uma pessoa um pouco melhor, um marido razoável, mas tenho a certeza inabalável de que deixarei para o mundo filhos melhores do que eu. Neste 7 de fevereiro de 2015, por ser “shabat”, o Cemitério Israelita estará fechado. Mas domingo irei lá, cumprindo um ritual de 50 anos. O escritor israelense Amós Óz disse que uma pessoa só morre verdadeiramente quando morrer a última pessoa que se lembrava dela. Ainda estamos vivos: filhos, sobrinhos, primos, e muitos amigos. Então, eles estão vivos em nossas lembranças. Ademais, meu sentimento é o que o imortal Fernando Pessoa disse em uma carta a João Gaspar Simões: “Tenho, do passado, somente saudades de pessoas idas, a quem amei; mas não é saudade do tempo em que as amei, mas a saudade delas; queria-as vivas hoje, e com a idade que hoje tivessem, se até hoje tivessem vivido.”

13 ideias sobre “Família Guelmann, uma história de dor e de luz

  1. Jorge Eduardo

    Gerson, sei que você é meu veterano no CEP e já nos falamos, mas isso não importa. Li com algumas lágrimas escapando. Por sua dor, por sua memória, pelos seus que foram antes do tempo (há uma máquina não humana em nosso caminho às vezes), pelos que ficaram. A dor do meu próximo é a minha dor. Sua felicidade é a minha. Sua memória é a minha. Ainda estamos vivos. Em memória aos que nos deixaram. Abraço fraterno. OSS!!!

  2. Eliseu João da Silva

    Não posso dizer que somos amigos, talvez conhecidos, a correria da vida nos fez termos esparsos contatos que foram o suficiente para admirá-lo como ser humano, pela sua inteligência, educação, carisma, espírito altaneiro, amigo dos amigos, leal, entre outros. Talvez a sua narrativa tenha para mim desvendado o segredo da altivez que carrega que pude perceber mesmo tendo -o conhecido tão pouco. Talvez e Infelizmente o relato de uma tragédia familiar tão marcante tenha tecido o seu caráter e personalidade incomum daqueles que levam a vinda com alegria marcante mesmo que tantos motivos tenha para assim não ser.
    Conhecer essa parte da sua vida me emocionou muito e eu que pago para não escrever, pela total ausência de traquejo não resisti em faze-lo para dizer, que passo a admirá-lo ainda mais, e dizer que neste o momento o sentimento é o único que podemos passar em situações como esta, um abraço de solidadriedade, um abraço de tentar transmitir energia para que você consiga continuar levando a sua vida com tanta força e dignidade, pra não se deixar abater por elas e ainda poder transmitir aos que dividem com você história o tomem como exemplo de vida! Abraço! Eliseu João da Silva.

  3. Jose maria correia

    Gerson , uma das raras unanimidades como ser humano generoso , amigo e ainda com tanto talento para escrever. De fato determinadas tragédias não encontram explicação lógica nem palavras para comentar o sucedido , abcs Shalom .

  4. MANOEL AFONSO

    Não conheço o autor do texto, mas neste domingo fiz a leitura pausadamente e olhando a fotografia várias vezes para entender a tragédia, suas consequências e até imaginar o futuro das pessoas se o fato não tivesse ocorrido. Tem sim o autor razões para escrever com alma e lágrimas seu lamento, que serve como lição a todos nós que não passamos por essa experiência familiar. Pena que o Gerson não seja espírita para seguir outros caminhos investigativos porque as vítimas não estavam preparadas para a partida. De Campo Grande, Mato Grosso do Sul.

  5. Djalmar Fridlund Filho

    Veja só; foi exatamente esta história que meu pai me contou após ter vindo morar comigo, depois de ter sido acometido pelo mal de Alzheimer. Foi uma época complicada, na qual optei por deixar minha empresa em segundo plano e passar o máximo de tempo possível com meu pai. Este, com a memória remota característica da doença, ainda acreditava que eu fazia filmagens. Frequentemente explicava, com paciência, que não exercia este tipo de trabalho desde 1991, e que o que praticava estava atrelado a uma diversificação da antiga atividade. Foi quando surgiu por menção o sobrenome da sua família, Guelmann. Ele me discorreu em detalhes o acidente ocorrido, e falou de seu pai, como era querido e auxiliava outras pessoas.
    Provavelmente eles eram amigos, pois se referiu a ele como Issaquinho e sorriu com satisfação e um brilho peculiar em seus olhos.
    Citou também seu avô como sendo o pioneiro na área a que eu me dedicava, que era de mobilização por uma causa comum através de áudio-visual. Me lembro de comentar que na época em questão, de seu avô, deveria ser só visual e que provavelmente não existia a parte sonora. Ele deu risada.
    Vai ver que foi daí que surgiu a sua veia de comunicação.
    Se Óz estiver certo, seus pais, irmãs e avós vão viver por muito tempo ainda, não apenas na memória de familiares, mas também daqueles que eles tocaram com seus trabalhos e caráteres. Embora Fernando Pessoa traduza nosso sentimento que a presença física seria fundamental para aplacar nossa saudade, independente da circunstância, nós podemos sempre nos lembrar, e assim, mantê-los vivos em nós, da melhor maneira que pudermos. E pensarmos que eles certamente gostariam de nós da mesma forma: vivos hoje, com a idade que hoje temos, com tudo que temos vivido.

    Recordemos sempre uma citação que ouvi de você: “Temos a Obrigação de ser Feliz”

    Abraço
    Zico

  6. Rubens Bueno

    Chegando em Curitiba na época e(exatamente dois anos puxando pela memória lembro-me deste trágico acidente. Agora e de forma emocionante nosso Gerson relata esse episódio, que mesmo não os conhecendo parece-me tão próximos que fiquei extremamente emocionado!

  7. ASTROMAR WASILEWSKI

    Vamos esquecer um pouco do passado triste , se alimentarmos as brasas da tristeza elas não desaparecem lembre dos bons e alegres momentos em que vocês viveram juntos . Estudamos no GAP ginasio adventista paranaense a 57anos passados tinhamos 10 anos . lembro ainda do paletó que voce me deu. boas lembranças .

    Um grande abraço Astromar.

  8. Neuma Viana Cordeiro

    Gerson estudamos no GAP eu tinha sua foto da formatura com dedicatória Admissão ao Ginásio. Voce trabalhava seus horários na Secretaria e Tesouraria. Moro em Curitiba.lamento ler sobre sua familia.

  9. Jorge Mario dos Santos

    Boa tarde Gerson

    Não só vcs perderam um grande pai, mais nós que nascemos naqueles vagões, como a gente dizia, tinhamos muita felicidade, pois sempre aguardavamos o Natal esperando, que essa ilustre família Guelmann, traria muita felicidades aos seus funcionários, com muito presente e guloseimas, para seus filhos, eu tive uma infância muito alegre e agradeço por Deus mandar essa família abençoada.

    Abraços

  10. Sandra

    Olá Gerson, sempre soube que você era bom. Digo isso porque te conheci em 71,nos tempos obscuros a que se refere. Você, diferente de muitos, era simples,como seu irmão mais velho. Eu, ainda menina, acompanhei minha mãe que trabalhava como cozinheira na praia. Nós sabíamos pela babá de seu sobrinho, sobre esse fato tão triste. Sabe Gerson, nós ficamos muito vazios sem Deus. Sei também que o amor de Deus é tremendo, pois enviou seu Filho Cristo Jesus para que todo que Nele seja salvo. “Aqui”, viver nunca foi fácil, mas devemos nos esforçar para sermos pessoas melhores a cada dia. Deus abençoe você e sua família.

  11. Antonio Romeu Moreira Filho

    Estudei no GAP em 1959, na época era Preceptor o Pastor Bellezi. Tinham recém concluído a ala masculina. Trago até o dias de hoje, nos meus 76 anos, excelentes lembranças daquele exemplar estabelecimento de ensino. “Das flores o perfume, dos mestres o ensinar, jamais esquecerá quem por aqui passar”. (Trecho do hino do GAP). Aproveito o espaço para me solidarizar com o Gerson e familiares. “Tudo podemos Naquele que nos fortalece”.

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