por Sergio Brandão
O cabelo já caiu por conta da quimioterapia. Ela acha que mantém a dignidade não tirando a dentadura para fazer alguns exames. Dona Ruth mente ao enfermeiro dizendo que não tem prótese dentária. Por pouco tempo fica com olhar distante… pensa e retoma a conversa com o ele perguntando se dentadura é prótese dentária.
Dona Fermina, que vem do interior para novos exames de rotina para acompanhar a doença, se sente desconfortável com as frequentes idas ao banheiro. Às vezes não consegue completar o caminho sem o constrangimento do que fica no chão e que molha sua roupa. A enfermeira procura deixar dona Fermina mais à vontade. Mas ela não relaxa. Tenta limpar, com vergonha, o que ficou pelo caminho.
Já faz quase uma hora que estou ali com as duas. Chega minha vez de ir ao banheiro. Ordem do enfermeiro.” O senhor precisa esvaziar a bexiga para o exame”, diz ele. Obedeço e sigo. Na frente do vaso uma recomendação: “O sanitário é de uso de ambos os sexos. Tanto homens como mulheres, devem urinar sentados no vaso. A descarga deve ser dada três vezes” (não entendi porque três vezes). Como sempre tive boa pontaria. Não sentei. Lembrei de um tio que faz isso em respeito às três mulheres que tem em casa – além de levantar a tampa.
Lavo as mãos antes de sair e no cesto de lixo vejo as fraldas de dona Fermina. Estão cobertas por porções de papel higiênico. Um segredo dela e da enfermagem.
Até que o contraste faça efeito e se alastre pelo organismo, minha espera passa de uma hora. Depois de mais algum tempo, chega a minha vez . O exame me espera , a sala está preparada. Minha situação é confortável diante daquele quadro. Apenas investigo algumas desconfianças.
Aquelas senhoras já estão numa luta declarada, aberta, contra a doença. Me sinto diferente delas. Nossas situações são definitivamente diferentes, mas não foi pensando assim que saí de casa hoje cedo.
Consigo colocar nas nossas relações, ainda que só de olhares, respeito e compreensão pelo que andam vivendo e passam naquele momento. Elas me olham da mesma forma. Dona Fermina imagina que eu possa ter ouvido a conversa dela com a enfermeira. Ela aproveita uma troca de olhar exigindo respeito. Aliás, ali, todos se olham da mesma forma. Acho que é porque todos conhecem exatamente onde está a dor desta maldita doença.
Os profissionais que atendem são especiais. São iguais com todos. Educados e sempre sorrindo. Em muitos momentos falam naturalmente de todos os constrangimentos que o câncer pode causar, como quem fala com o filho que está gripado. Os sorrisos devem aliviar a dor, o constrangimento e alguns outros problemas que a doença traz.
Em cada um dos olhos também consigo ver esperança. Mas, antes, vejo tesão pelo que vivem naquele momento. Parece só importar mesmo o momento.
Por mais amenas que pareçam, as conversas são intensas. A viagem de dona Fermina até Curitiba, por exemplo, foi um ato heroico. A volta será contada logo ali, em Irati, de onde veio.
Seus filhos foram descritos um a um. Aos poucos fui formando a fisionomia da cada um, tamanha era a precisão que dava quando falava de cada um deles. A Heloísa me pareceu a mais bonita. Dona Fermina parecia interpretar a leitura de um texto de teatro. Seus personagens reais a cercam de carinho. Mais que isso, lutam para mantê-la viva.
Dona Fermina me ensinou que cada coisa é vivida uma de cada vez.
Obrigado, dona Fermina, o meu medo foi embora!