Desenho de Theo Szczepans
por Rogério Pereira
Não eram nossos amigos. Mas não vivíamos sem eles. Do alto, do morro de nossas casas, descíamos em disparada em direção ao campinho de terra atrás da igreja de madeira e milagres dominicais. Nem sempre jogávamos contra o feroz adversário. Tínhamos receio da perene e desastrosa vergonha que nos assombraria os passos até a escola durante a semana. A zombaria infantil é a porta do inferno sempre escancarada. Mas íamos confiantes. E perdíamos quase sempre. Não me recordo de vitórias. Um ou dois empates. De resto, derrotas incontáveis perante os olhos inclementes de Deus a nos vigiar do altar de sonolentas missas. Estropiados, éramos um time de nome pomposo: San Remo. Copiei-o descaradamente da fachada de uma loja de roupas no centro de Curitiba, na rua próxima aos pontos de prostitutas gordas, feias e sebentas. O San Remo ganhara poucas partidas. Não tinha uniforme. Chuteira era uma palavra que não sabíamos se era com x ou ch. Até hoje, a maioria daquele time desconhece a palavra escrita. A ignorância é uma pedra que se joga na porta do inferno na tentativa de arrombá-la.
Não sei quem começou a chamar nosso temido adversário de Abacate. Desta proeza, não posso me ufanar: sou daltônico. A razão é simples: a camisa do time do Abacate (sim, eles tinham camisa; e com número às costas) era verde. É o que carrego na memória esfarelada para quem o mundo não passa de uma sarcástica ironia cromática. Enfim, o verde da camisa lembrava um abacate. Ou talvez fosse o miolo. Aquela gosma esmagada que se come com açúcar, leite ou sal. De verdade, não me pareciam oito abacates em campo (não cabiam onze jogadores de cada lado na estreita faixa de terra entre a rua e a igreja). Mas sobre este assunto, tenho de me calar. Até hoje, acho que fui um traidor ao colocar o caroço de abacate num copo d’água sobre a pia da cozinha. Em alguns dias, um talo comprido roçava as bordas do copo e uma pequena árvore espiava pela janela. Era como brincar de Deus — e eis a vida. Mas sem ter de se preocupar com a legião de pecadores (eu, incluído) a zanzar pelas ruas da minha infância.
Para aquele jogo — após muitas derrotas —, decidi que deveríamos ter uma camisa, um uniforme do San Remo. Risível armadura contra a lança adversária. Estava cansado de jogar sem camisa — o peito magricela, as costelas rasgando a pele, açoitado pelo vento e pelas boladas inimigas. Nossos jogadores (meninos entre 9 e 12 anos) teriam de providenciar uma camiseta branca. Não poderia ser a da escola. O símbolo do colégio estadual estragaria tudo. Branca, totalmente branca. Não poderiam esperar outra cor de um daltônico. Recebi trapos com as deformidades dos corpos de criança. Com potinhos de tinta (comprados com muita dificuldade), pintamos os números às costas. Meu irmão me ajudou. Dois invejáveis designers. Ele, meu irmão, era o goleiro. Então, uma blusa sovada preta com o número um alaranjado. A numeração não ficou muito simétrica. Cada camiseta levava um número de tamanho distinto. Carregávamos às costas o peso da nossa ignorância. Os calções eram de tergal, fabricados pelas mães em velhas máquinas Singer. Nos pés, conga, kichute ou chinelo-de-dedo. Alguns, descalços. É bem engraçado jogar futebol de chinelo. Vem o chute certeiro. Vai a bola. O chinelo, saudoso, segue junto. Um gol de chinelo vale dois. Enfim, éramos um pequeno exército de indigentes, pedintes à espera de um milagre. Mas Deus e o padre torciam sempre com muita fé para o adversário.
Perdemos. A derrota não nos envergonhou. Uma diferença pequena. Dois ou três gols. Lutamos ferozes na estreia do único uniforme que tivemos. Não fomos moldados para vitórias. Perder era nossa sina. Voltamos para casa aos farrapos. Os números alaranjados pendiam para os lados.
Às vezes, ainda passo pelo campo de batalha. A velha igreja foi derrubada. Em seu lugar, uma nova casa para Deus, cuja torre acaricia as barbas de São Pedro. O padre morreu. Está sentado à direita de deus-pai-todo-poderoso. No campinho de terra nasceu um condomínio de pequenas casas iguais. O time do Abacate acabou. O nosso também. A loja San Remo fechou. Quinquilharias chinesas agora se amontoam ali. Nunca mais encontrei nenhum jogador do time. A mãe morreu. A velha Singer está em algum cemitério de máquinas de costura. Ainda não tenho certeza de que o abacate é verde. Aguardo pela cura do daltonismo.
*Publicado no site Vida Breve (www.vidabreve.com.br)
Dizem que esse sujeito é um chato.
Gosto de ler Rogerio Pereira. Tem um jeito especial de contar historias. Imperdivel!