20:08A melhor Justiça

por Denise Frossard

Um longo período de ditadura construiu uma lógica de funcionamento do sistema político e administrativo no Brasil: o Estado sugando a sociedade em benefício de si próprio e de uma elite parasitária.

Em determinado momento de nossa história, a sociedade cansou de servir de insumo para o Estado, resolveu inverter a lógica e impulsionou um movimento de democratização. Acontece que a democracia não tem efeito universal imediato. Ela, ao exemplo dos rios, segue seu curso preenchendo os espaços à medida que vai se estendendo. No caminho, no entanto, pode encontrar saliências maiores que vão criar represas.

A política define a velocidade e a força das águas do rio, de tal maneira que a democracia possa ampliar e modelar as margens; a Justiça aplaina o terreno evitando as represas e abrindo o acesso da democracia aos menos favorecidos.

Uma das reformas que a sociedade pretende obter na estrutura do Estado Brasileiro, nestes tempos de adaptação à democracia é a da Justiça, porque não o fazendo, a democracia não ultrapassará as saliências do terreno social e não atenderá os impotentes; os menos favorecidos. Não havendo reforma na estrutura da Justiça, não haverá a inserção dos marginalizados ao ambiente democrático.

Neste ponto quero separar os ramos do debate que se trava no Brasil a respeito da reforma.

Defendo uma reforma na maneira como o Estado fornece o acesso à Justiça, antes de defender uma reforma na estrutura do judiciário. E a questão não é semântica;  é funcional.

A lógica da reforma e os seus fundamentos vieram à luz em 1920 na Faculdade de Direito de São Paulo, pela pena de Rui Barbosa:

“Não vos mistureis com os togados, que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado, ao Governo, à Fazenda (…). Antes, com os mais miseráveis é que a Justiça deve ser mais atenta, a redobrar de escrúpulo; porque são os mais mal defendidos, os que suscitam menos interesse, e os contra cujo direito conspiram a inferioridade na condição com a mingua dos recursos”.

A Oração aos Moços contém cada uma das preocupações, ou se preferirem, cada um dos passos que se deve dar na direção de se reformar a Justiça no Brasil.

Entendo que a primeira providência prática num processo de interação social deva ser unificar a linguagem. A reforma deve almejar a interação social, unindo o que a ditadura desuniu: a sociedade ampla e o Estado. O idioma que se fala na Justiça deve ser inteligível para o cidadão ou cidadã mais humilde, menos letrado.

O idioma da Justiça Brasileira, definitivamente não é o idioma do brasileiro comum e a sua tradução tem sido tarefa difícil mesmo para alguns militantes do Direito.

Não são poucas as minhas experiências com réus estupefatos, assustados, plenos de interrogação, ouvindo o falatório de promotores, defensores, seus advogados e juízes. O processo de inserção – de rompimento das represas – se dará pela unidade da língua, DNA de identificação de um povo.

A interação do idioma não se faz a partir de dispositivos legais, mas a partir da mudança em toda uma cultura. Os operadores do Direito precisam refazer a sua compreensão do que seja o Estado, a Justiça e o cidadão.

O segundo ponto de uma reforma deve ser o esforço de aproximação do Juiz ao cidadão que bate às portas da Justiça, quer compulsória ou voluntariamente. Como estão hoje os códigos, rituais e costumes, a interação da Justiça com o cidadão, personalizada na pessoa do Juiz, é quase impossível. Os códigos e os rituais inibem a aproximação, e muitos juízes, de certa forma, apreciam esta parte dos códigos e dos rituais. Também aqui a questão é de alteração genética.

O terceiro ponto, e vou interromper com ele a dissertação para não avançar e abusar do espaço, é um exercício de alquimia. O papelório que forma os processos e define os prazos, precisa ganhar alma; ganhar vida.

Advogados, Defensores, Juízes, enfim, todos os operadores da Justiça, neste quadro incluídos as funcionárias e funcionários dos cartórios, precisam reciclar as suas emoções e ver além dos processos e dos papéis e prazos, o ser humano que depende do trabalho da Justiça.

Ao lado de se buscar uma reforma na estrutura funcional do Judiciário, perseguindo um conforto maior para os operadores da Justiça, devemos nós, políticos, legisladores e partidos, encontrarmos um caminho – uma maneira de reformar a Justiça, tendo presente a inserção social. A Justiça deve servir ao cidadão; deve ser um instrumento de equalização social, política e econômica.

Nisto deve estar a lógica de uma reforma no sistema.

Dostoievski alertou que o melhor homem do mundo pode tornar-se insensível pelo hábito. A melhor Justiça do mundo também pode tornar-se insensível pelo hábito.

O nosso hábito, francamente, tem sido o de ministrar Justiça para o Estado e para alguns poucos favorecidos pela sorte, esquecendo o cidadão comum.

Mas, é tempo de mudar!

Uma ideia sobre “A melhor Justiça

  1. Professor Xavier

    Data vênia doutora Regina, enquanto a nossa Justiça permanecer permitindo que as partes litigantes usem de estratagemas quase infinitos, não é deixando de usarmos o tal “juridiquês” que a Justiça se fará. Estou litigando contra a União e sua advocacia há quase 5 anos, se formos contabilizar quanto já se gastou nas idas e vindas do processo até Porto Alegre, e de lá até Brasília, os custos já suplantam o valor da causa.

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