por Ivan Schmidt
Tomo a benção do estimado Célio Heitor Guimarães, aqui nos campos de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais o mais fiel intérprete do pensamento de Rubem Alves, a quem peço vênia para também registrar o lamento pela morte do professor de professores na definição de Cristovam Buarque, a meu ver, a expressão mais adequada para realçar a grandeza intelectual e ao mesmo tempo a humildade do verdadeiro sábio que o Brasil perdeu.
Meu primeiro contato com a obra de Rubem – teólogo, filósofo e acima de qualquer outra coisa, um mestre, deu-se em 2000 com a leitura do livro Da esperança (Papirus, SP, 1987), a tradução para o português da tese de doutoramento apresentada à Universidade de Princeton (Nova Jersey), publicada pela Corpus Books de Washington em 1969. O autor da tradução é João-Francisco Duarte Junior.
O título em português é uma síntese do original dado pelo escritor ao alentado trabalho (Towards a theology of liberation), com o qual o editor norte-americano implicou alegando que até então ninguém jamais ouvira falar sobre tal coisa. O livro logo aceito para publicação somente seria impresso, entretanto, se o autor concordasse com o título sugerido pela editora (A theology of human hope).
Já por esse pormenor se pode aquilatar a genialidade e a lucidez do mineiro de Boa Esperança, onde nasceu em 1933. Anos mais tarde, Rubem foi pastor da Igreja Presbiteriana em pequenas cidades do interior de Minas Gerais, de onde partiu para a extraordinária aventura de sua longa vida de pensador das várias culturas da segunda metade do século passado.
Pois é, quando ninguém ouvira falar da Teologia da Libertação – e isso causou espécie inclusive entre os grandes teólogos dos Estados Unidos – Rubem Alves conquistava o doutorado em Princeton com a tese que inaugurou esse debate entre os mais respeitados intelectuais da religião cristã. O próprio Leonardo Boff, que se transformaria num dos expoentes da Teologia da Libertação, reconheceu ter sido Rubem o precursor da nova vereda que encantaria muitos clérigos católicos do Terceiro Mundo, entre os quais o monge franciscano, anos depois desligado da Igreja, que em nenhum momento compactuou com o que se considerava perigoso desvio da teologia católica.
A simplicidade de Rubem Alves aparece na primeira linha do prefácio de Da esperança, em que cravou: “Peço desculpas por ter escrito um livro assim tão chato. Eu não queria, porque eu não sou assim. Se escrevi desse jeito foi porque me obrigaram, em nome do rigor acadêmico”.
E esse rigor e profundidade na análise conceitual dos eventos do século – vistos pelo rigor do pensador humanista – se encadeiam numa narrativa construída com uma lógica dialética admirável.
Vejamos a nuança idealista esboçada sobre a política, nos tempos ásperos da ditadura militar, da guerra do Vietnã e outras mazelas sociais: “A política seria, assim, a prática da liberdade, uma atividade do homem livre com o intuito de criar um novo amanhã. Neste contexto, a política não mais é entendida como uma atividade de poucos, como um jogo de poder das elites. Antes, ela consiste na vocação do ser humano, pois todos são chamados a participar, de uma forma ou de outra, na criação do futuro. A política torna-se, para esta consciência, o novo evangelho, a anunciação da boa nova; se o homem emergir da passividade e da vida reflexa, como sujeito da história, um novo futuro poderá ser criado”.
Consciente da transformação que o mundo experimentava sob domínio de um sistema que não apenas envolvia, mas condicionava o homem, antevisto por Marcuse, Rubem desenhava outra realidade perversa ao preconizar que “a tecnologia está, com efeito, criando um tipo de homem, um homem que se tornou unidimensional e obeso devido aos bens produzidos pelo sistema tecnológico. O ser humano não usa mais a tecnologia: ele agora é parte desse sistema total. Consequentemente, tornou-se incapaz de pensar e de agir criticamente, transformando-se num ser a-histórico e sem futuro, que se sente à vontade num sistema convertido em seu lar e em seu amanhã permanente”.
E nesse conflito ideológico que despertou a consciência humana em todas as latitudes, o caminho da religião que a muitos parecia o mais conveniente meio de escape, na visão de Rubem (ele mesmo um religioso desapontado) já não tinha a importância de outros tempos: “A linguagem da teologia e da Igreja, a linguagem dos muitos hinos, liturgias e sermões soa ao homem secular, comprometido com a tarefa de criar um mundo novo, como a voz de uma esfera estranha e remota. Esta é uma das razões porque um crescente número de pessoas está deixando as igrejas e optando por um humanismo totalmente secular”.
Contudo, para Rubem Alves o futuro não é apenas um signo de morte, ou uma ameaça de destruição do homem, ao contrapor que “a nova orientação da consciência humana significa uma nova direção para a ação”, que “é filha de sua esperança, carregando as marcas de seu amor e de sua liberdade para um novo futuro“.
O filósofo adverte que “como parteira do futuro” a ação se transforma na atividade humana que pode acrescentar o novo ao mundo, embora não possa prescindir de uma força superior, aliás, bem identificada: “A graça de Deus, ao invés de tornar a criatividade humana supérflua ou impossível, é a política que a torna possível e necessária. Tal se dá porque no contexto da política de libertação humana o homem encontra um Deus que continua aberto, que ainda não chegou, que está voltando para a atividade humana e é por ela auxiliado. Deus precisa do homem para a criação de seu futuro”.
O impressionante em Rubem Alves é sua capacidade de transitar em diferentes terrenos do interesse humanista, a bem da verdade, o frutuoso trajeto de uma existência dedicada ao pensamento e à tarefa de torná-lo audível e ao alcance dos semelhantes. Daí suas centenas de livros, artigos, seminários, conferências e aulas.
Com a mesma versatilidade com que ministrava um simpósio sobre o existencialismo na teologia de Karl Barth, um dos mais importantes teólogos do século XX e, visivelmente, seu inspirador até na rebeldia contra alguns dogmas religiosos, Rubem demonstrava seu amor às coisas simples. No livro essencialmente intimista que intitulou O quarto do mistério (Papirus, SP, 1995), escreveu: “Cheguei de viagem e antes de entrar em casa fui ver a minha horta. O mato crescera muito. Mas minhas plantas também. O verde anunciava uma exuberância de vida, nascida do calor e das chuvas que se alternavam sem parar. O meu coração se alegrou”.
Só mesmo um homem de rara inteligência e profundo sentimento cristão, não segundo regras inflexíveis dos catecismos e confissões históricas, poderia se expressar com tamanha sensibilidade: “Horta se parece com filho. Vai acontecendo aos poucos, a gente vai se alegrando a cada momento, cada momento é hora de colheita. Tanto o filho quanto a horta nascem de semeaduras. Semente, sêmen: a coisinha é colocada dentro, seja da mãe/mulher, seja da mãe/terra, e a gente fica esperando, pra ver se o milagre ocorreu, se a vida aconteceu. E quando germina – seja criança, seja planta – é uma sensação de euforia, de fertilidade, de vitalidade. Tenho vida dentro de mim! E a gente se sente um semideus, pelo poder de gerar, pela capacidade de despertar o cio da terra”.
Era tanto o desvelo de Rubem por sua horta, que chegou a ponto de proclamar o desejo de conceber uma teologia nela inspirada, na qual “o meu Deus teria o cheiro das folhas do tomateiro depois de regadas, e também da hortelã, do manjericão, do orégano, do coentro”.
Para concluir essa pensata já alongada e premiar os leitores que corajosamente chegaram até aqui, transcrevo um derradeiro reflexo do iluminismo cultivado pelo filho de Boa Esperança, quem sabe, um lenitivo para os homens de boa vontade: “A política tradicional deve ser abolida porque justifica o monopólio do poder de poucos sobre muitos, tornando, por conseguinte, estes muito incapazes de se envolverem diretamente com o ato da criação. O ato criativo direto foi relegado à esfera da ilegalidade. Mais ainda, a política tradicional torna impossível o verdadeiro ato criativo. Já vimos que a criatividade requer a desistência de pressupostos há muito mantidos, de forma a se começar de novo: morte e ressurreição. Na política tradicional não importa qual partido ganhe: as regras continuam as mesmas”.
Décadas depois as palavras de Rubem Alves continuam com a mesma carga de precisão e sabedoria.
Belíssimo texto, mestre Ivan, como de costume. Rubem, esteja ele onde estiver, ficou feliz com a grandeza da sua manifestação. Ele passou a vida em busca de um mundo que possa ser amado, com simplicidade, alegria e muito afeto. É preciso dar sequência à procura dele. O único senão do seu texto, bom Ivan, foi a referência a este seu colega de letrinhas.
Brilhante homenagem ao ilustre Rubem Alves, grande Ivan Schmidt!