Do jornal O Estado de São Paulo, em reportagem de Pedro Venceslau e Valmar Hupsel Filho
A memória do partido inacabado de Ulysses
Peemedebista tentou criar em 1992, ano de sua morte, legenda parlamentarista
Eram 16 horas do dia 8 de outubro de 1992, uma quinta-feira, quando o jurista Miguel Reale Júnior foi avisado por sua secretária que o deputado Ulysses Guimarães estava na linha. Atendeu de pronto pensando que se tratava de uma conversa de rotina, mas foi surpreendido com o que ouviu. “Reale, vou lhe contar uma coisa absolutamente sigilosa. Guarde o mais absoluto sigilo até terça-feira por volta do meio-dia. Estou indo para Angra dos Reis na casa do (ex-ministro) Renato Archer. Mas na próxima terça-feira, às nove da manhã, tenho encontro com o (presidente) Itamar (Franco). Vou lá dizer que estou saindo do PMDB.”
A notícia veio seguida de uma recomendação. “Espero levar comigo 60 deputados. Comunique isso para o Fernando (Henrique Cardoso) e (Mário) Covas. Diga que pretendo constituir um grande partido parlamentarista, que não seja o PMDB nem o PSDB.”
Antes que o amigo e aliado assimilasse o que acabara de ouvir, o deputado fez uma última observação. “O Itamar é muito sensível. Se ele souber que algum dos outros souberam antes, ele vai criar problema. Mas quero que os outros saibam logo. Então, lá pelo meio-dia, já terei conversado com o presidente e você poderá falar com eles.”
Por 22 anos, Reale Júnior tratou esse diálogo com discrição e só o revelou a poucos amigos em conversas reservadas. A morte trágica de Ulysses em 12 de outubro daquele mesmo ano, num acidente de helicóptero quando voltava de Angra, relegou o movimento para o escaninho da história.
A determinação de Ulysses tinha potencial para alterar significativamente o quadro partidário brasileiro daquele momento, avalia o jurista. “A tragédia foi de tal grandeza que esse fato se perdeu. Compreenda a excitação dele (Ulysses) de querer voltar de Angra mesmo contrariando o piloto, que não queria voar por causa do tempo. Ele tinha uma reunião no dia seguinte às 9h em Brasília e precisava pegar o avião às 7h.”
O deputado decidira deixar o partido do qual era um dos maiores símbolos em um momento de ebulição política. Naqueles dias de outubro, ele e Reale Júnior estavam imersos na formatação jurídica da frente que defenderia o regime parlamentarista no plebiscito que seria realizado no ano seguinte. Nos meses anteriores, Reale Júnior fora o principal responsável por redigir a petição do impeachment de Fernando Collor de Mello. Ulysses foi um dos primeiros a ler o texto.
Isolamento. Apesar de ter sido um dos maiores símbolos da campanha por eleições diretas e ter presidido a Assembleia Constituinte, Ulysses vivia um momento delicado de sua carreira política. Derrotado na eleição presidencial de 1989, perdera também o comando do PMDB para Orestes Quércia. Isso depois de ver seus antigos aliados deixarem a legenda em 1988 para formar uma nova sigla, o PSDB.
“O potencial do novo partido pensado por Ulysses era imenso. Além do fortalecimento extraordinário da Frente Parlamentarista, haveria uma grande surpresa nacional. Só o fato dele sair (do PMDB) seria um fato estrondoso”, diz Reale Júnior.
O jurista, que naquela altura já havia deixado o PMDB para entrar no PSDB, conta que a ideia era que da união do grupo de Ulysses com os tucanos surgisse uma nova legenda. “Não sabemos qual seria a reação do Fernando (Henrique Cardoso), do Mário (Covas) e do (José) Serra a essa proposta. Mas eles provavelmente iriam aceitar. Havia identidade entre eles, além de uma simpatia pessoal muito grande.”
Questionado pelo Estado, o ex-governador José Serra confirmou a tese de Reale Júnior. “Eu estava muito aberto a isso. O PSDB nasceu como um partido parlamentarista. O Ulysses tinha um tamanho tal, que podia se justificar a criação de um nova força que unisse a gente”, disse o tucano, atual candidato ao Senado. A proposta, de fato, tinha grande potencial. Ulysses levaria com ele dirigentes peemedebistas de sua área de influência no Rio Grande do Sul e em Estados do Norte e Nordeste, o que enfraqueceria o partido comandado por Quércia na época.
Reale evita falar sobre a virtual lista de peemedebistas que estariam na contabilidade de Ulysses. Mas se arrisca a citar alguns nomes: Genebaldo Correia, da Bahia, Ibsen Pinheiro e Pedro Simon, do Rio Grande do Sul, e Cid Carvalho, do Maranhão. O senador Pedro Simon disse ao Estado que nunca soube do movimento de Ulysses. A ideia, segundo Reale, era justamente essa: evitar que a história se espalhasse por Brasília e contaminasse o projeto. Mas a confiança da debandada era total. Questionado se aceitaria o convite, Simon sinaliza que sim. “Eu aceitaria o parlamentarismo de corpo e alma. O PMDB do Rio Grande do Sul estava fechado com o Ulysses”, diz o senador de 84 anos, crítico dos rumos de sua legenda e que, recentemente, anunciou que não vai disputar novo mandato.
Com a morte de Ulysses, o comando da Frente Parlamentarista passou para o paranaense José Richa, que não tinha o mesmo carisma do “Senhor Diretas”. Apoiado por Luiz Inácio Lula da Silva, Paulo Maluf e Leonel Brizola, todos pré-candidatos ao Palácio do Planalto, a frente presidencialista bateu na tecla de que só aquele regime permitiria que o povo realizasse o sonho de votar para presidente. Venceram o plebiscito com ampla margem. Enquanto PT e PSDB se revezaram no poder, o PMDB beneficiou-se de sua capilaridade e tornou-se a maior e mais influente sigla brasileira. Quase sempre dando apoio aos governos.
Se o caos partidário já é imenso hoje, imagine-se o que seria se tivéssemos o parlamentarismo? Aí é que nada andava. Na prática vivemos um regime misto, o imperialismo presidencial com um parlamento subserviente. Assim ambos ganham, o titular do poder executivo com os donos do poder legislativo. Para quê parlamentarismo então?
Mudar? Mudem as pessoas que se candidatam e talvez alguns eleitores. Tá quse ficando como aquela frase do governo militar ” Brasil ame-o ou deixe-o”. Com esse atual quadro poderíamos criar uma outra. Brasil muda ou nós nos mudamos