por Ivan Schmidt
No último dia 20 desse mês a morte de Ildefonso Pereira Correia, o Barão do Serro Azul (1847-1894), completou 120 anos. Homem de empresa, exportador de erva mate e influente na política paranaense no segundo reinado, Ildefonso havia sido agraciado por D. Pedro II com o título nobiliárquico. Contudo, com a proclamação e consolidação da República a partir de 1889, apesar de sua lealdade à monarquia, o Barão não alimentava a menor esperança na possibilidade de um terceiro reinado como era a aspiração de muitos.
Para lembrar a data histórica, um grupo de dirigentes e integrantes da Associação Comercial do Paraná, Instituto Histórico e Geográfico do Paraná e Movimento Pró-Paraná, esteve exatamente no local do assassinato do Barão e seus cinco companheiros, no km 64 da ferrovia Curitiba-Paranaguá, onde foi fincada uma cruz de ferro. A homenagem simples, mas tocante, consistiu num minuto de silêncio e reflexão, assim como na deposição junto à cruz de camélias brancas, as flores preferidas e cultivadas – em vida – pelo único paranaense a ter o nome inscrito no Panteão Nacional.
O que teria levado à morte brutal esse homem no auge da força empreendedora e da inteligência criativa, aos 47 anos de idade?
A República ainda estava nos primórdios e o marechal Deodoro da Fonseca, seu proclamador e primeiro presidente não mais estava no poder, do qual abriu mão após a frustrada tentativa de golpe de Estado em 3 novembro de 1891, como relata o historiador Renato Mocellin no oportuno livro Pica-pausXMaragatos, A mais sangrenta guerra civil brasileira, lançado esse ano pela curitibana Editora Conceito. “Mesmo tendo condições de resistir, Deodoro, doente e cansado, preferiu renunciar”, escreve Mocellin, acrescentando que “o homem que proclamou a República era ingênuo em termos políticos, totalmente despreparado para enfrentar os desafios do difícil momento histórico vivido pelo país”.
O vice-presidente Floriano Peixoto, conhecido como marechal de ferro, assumiu o governo e iniciou uma reforma geral na administração, bem como a substituição dos governadores estaduais que haviam apoiado o golpe. No Rio Grande do Sul, o governo local era exercido por Júlio de Castilhos, obrigado a renunciar em função da dubiedade em relação ao golpe. O posto foi assumido por Assis Brasil, cunhado de Castilhos que, entretanto, logo perderia o lugar em face da forte instabilidade política sulina.
A dissidência cresceu com a volta ao Rio Grande de Gaspar Silveira Martins, um dos muitos monarquistas banidos por Deodoro. “Notável tribuno do tempo do Império” na definição de Mocellin, Martins começou a clamar pela convocação de eleições presidenciais “e que o país deveria se transformar numa república parlamentarista”.
Floriano não gostou da proposta e, de imediato avisou que “se preciso fosse até com a espada defenderia o sistema presidencialista de governo”.
Enquanto isso castilhistas e federalistas (os que tencionavam derrubar a República) disputavam o governo gaúcho, a essa altura chefiado pelo repressor Barros Cassal, que os castilhistas tentaram derrubar com um golpe frustrado. Mocellin lembra que “à distância, Floriano Peixoto não media esforços para impedir que a facção liderada por Silveira Martins chegasse ao poder. Para isso, mesmo antipatizando com Júlio de Castilhos, procurou facilitar a volta deste ao governo”.
A confusão política corria solta, até que em 20 de novembro de 1892, Castilhos foi eleito governador numa eleição sem nenhum concorrente. “As posições foram se radicalizando. Multiplicaram-se assassinatos, estupros, roubos e prisões ilegais. De lado a lado, toda sorte de atrocidades foi praticada. A ‘xerenga’, adaga bem afiada, passou a ser usada largamente. Clarins soavam anunciando o toque de ‘degola’”, diz o historiador paranaense.
O barril de pólvora explodiu em 2 de fevereiro de 1893, quando os federalistas comandados pelo caudilho Gumercindo Saraiva reuniram a tropa em Aceguá (no lado uruguaio), atravessando a fronteira para acampar no rincão de Ana Correia, no município de Bagé. O estado maior de Saraiva era composto pelos experientes homens de guerra Marcelo Pina, Juca Tigre, Maneca Machado, Rafael Cabeda e Joca Tavares, que sozinho comandava uma milícia de “quase três mil homens”, como anotou Mocellin. Era o início da guerra civil entre pica-paus e maragatos, ou seja, entre as forças leais ao presidente Floriano Peixoto e os rebeldes que lutavam por sua deposição.
Segundo Renato Mocellin, a expressão pica-pau designava os soldados do Exército, que usavam fardas azuis e boné vermelho, lembrando o pássaro do mesmo nome. Quanto ao termo maragato, presume-se que o mesmo tenha se originado no Uruguai, de onde viria Gumercindo Saraiva.
No plano federal, as adversidades e o isolamento de Deodoro acabaram permitindo à oposição arregimentar políticos e altas patentes do Exército e Marinha na organização do contragolpe. Segundo Mocellin “o contra-almirante Custódio José de Mello ameaçou bombardear a cidade do Rio de Janeiro. Recebeu o apoio de unidades do Exército, da classe política e de populares. Mesmo tendo condições de resistir, para evitar uma guerra civil, o adoecido marechal mandou chamar à sua casa Floriano Peixoto, a quem entregou o cargo de presidente da República”.
Floriano depôs os governadores que haviam aderido ao golpe contra Deodoro, além de tirar dos postos anteriores ou despachar para a reserva os treze generais que assinaram o manifesto pedindo a realização de eleições presidenciais. O cheiro de golpe estava novamente no ar, tanto que pouco depois eclodiu a chamada Revolta da Armada. A alta oficialidade da Marinha provinha em grande número das classes abastadas, sabidamente simpáticas à monarquia.
Nesse mesmo período os federalistas haviam entrado em Santa Catarina, organizando o governo provisório em Desterro, a atual Florianópolis, com o respaldo da Armada. De lá os federalistas, sempre comandados por Gumercindo Saraiva e seus homens de confiança, atravessaram a divisa com o Paraná com a pretensão de passar também para São Paulo. Em nosso território o conflito bélico que se estenderia de 1893 a 1895 teve vários episódios marcantes, dentre os quais o principal destaque ficou para o Cerco da Lapa, em que despontou a legendária figura do coronel Gomes Carneiro, morto em combate e postumamente promovido a general.
Os sangrentos combates travados na pacata cidade entre governistas e rebeldes ocasionaram perdas para ambas as partes, incluindo a população civil. A falange de Saraiva, até então invencível, mais uma vez determinou a capitulação do adversário, embora tenha ficado pesadamente desfalcada.
É este o pano de fundo que nos faz retroceder aos idos de maio de 1894. A situação política em Curitiba está também entregue à confusão dos boatos que se cruzam a cada momento. Diante dos rumores de que a tropa de Gumercindo se aproximava da capital, o então governador Vicente Machado (que era vice e assumira no lugar do titular doente) fugiu para Castro, onde havia nascido e daí para São Paulo. “Corajosamente”, ironiza o relato de Renato Mocellin.
Com a debandada das autoridades, o Barão do Serro Azul foi chamado a chefiar a Junta Governativa do Comércio. Os primeiros homens de Gumercindo começam a entrar em Curitiba em estado deplorável, famintos e maltrapilhos. Os revolucionários decidiram fazer de Serro Azul o governador definitivo, mas este declinou do convite. Os federalistas deram o cargo ao médico João Menezes Dória.
Entretanto, as forças leais ao marechal de ferro tinham plenas condições de retomar o terreno perdido para os rebeldes, e foi o que aconteceu. Em maio de 1894 tropas legalistas entraram em Curitiba e segundo Mocellin “com elas voltavam os que haviam fugido, tendo à frente Vicente Machado, recebido como herói… Vários dos que haviam aplaudido Gumercindo aplaudiam agora Vicente”.
O comando militar da capital foi confiado ao general Ewerton de Quadros, que ordenou perseguição implacável aos considerados inimigos da República. A detenção de Ildefonso Pereira Correia ocorreu no dia 9 de maio de 1894, sendo o mesmo recolhido ao quartel da 1ª Divisão. Mocellin relata que as cadeias, quartéis e até o teatro São Teodoro, edificado no mesmo espaço hoje ocupado pela Biblioteca Pública, ficaram abarrotados de presos políticos.
“Na noite de 20 de maio de 1894, por volta das 21 horas, Serro Azul e seus companheiros de infortúnio deixaram a prisão e foram levados com escolta até a estação ferroviária. De lá, foram embarcados com destino a Paranaguá. Haviam sido informados que seriam levados até a terra natal do Barão para, em seguida partirem para o Rio de Janeiro, onde seriam julgados”, lê-se em Pica-pausXMaragatos.
Não foi o que aconteceu, relembra o historiador. Entre os quilômetros 64 e 65 da ferrovia, exatamente num ponto denominado apropriadamente de “Pico do Diabo”, o trem se deteve. Não se sabe a hora em que a chacina aconteceu. Serro Azul e outros cinco prisioneiros (Presciliano Correia, José Lourenço Schleder, José Ferreira de Moura, Rodrigo de Matos Guedes e Balbino de Mendonça) foram fuzilados e os corpos atirados no despenhadeiro.
Ninguém assumiu a responsabilidade pela ordem da execução sumária e infame.