de Rubem Braga
A lista é terrivelmente minuciosa; eu terei que apresentar, ao sair desta casa, tantos ganchos de pendurar roupa e tantos cinzeirinhos de cobre; que já que insisti pelo piano, tenho que me conformar com a presença de um enorme e sinistro meuble musiqueiro, onde se guardam velhos tangos e valsas. Meu amigo confere as coisas, de lista na mão e a velha vai repetindo os nomes e apontando os objetos, numa ladainha interminável; bocejo no meio de meu reino desordenado e precário; uma a uma terei de entregar um dia todas essas coisas de volta a esses velhos; e para eles são coisas de certo modo sagradas, como o longo contato de seus olhos e de suas mãos, coisas de suas vidas que incorporaram minutos e anos, lembranças, palavras, emoções.
Bocejo, depois fumo: nego-me a examinar, como eles gostariam, o detalhe de cada coisa, a minha indeferença parece que vagamente os ofende. Creio que sentem no fundo da alma um odeio deste estranho que vai morar em sua casa, com suas coisas; sou um intruso, o mais antipático dos intrusos, o intruso que paga o direito de ser intruso. E então eles ficam mais minuciosos, gastam meia hora para acrescentar na lista algumas coisinhas sem importância que tinham omitido, são avaros do que me alugam…
Partem. Chego à janela, vejo os que fecham com todo o cuidado o portão, e sorrio. Esses velhos são uns insensatos. Arrolaram centenas de cacarecos inúteis e se esqueceram do mais importante, do que me atraiu a esta casa, dos bens sem preço, que um vândalo poderia destruir, e entretanto, não estão no inventário, daqueles bens, que se sumissem, fariam esses dois velhos desfalecer de espanto e de dor; o que eles não compraram com dinheiro, com o longo amor, o longo, cotidiano carinho: as árvores altas, belas, ainda úmidas de chuva da noite, brilhando muito verdes, ao sol.