de Dalton Trevisan
Às treze horas de ontem, na rua Barão de Serro Azul, o ciclista Josué dos Santos costurava a sua magrela – epa, uma finta! Uai, nova firula! Olé, outro fininho! – pelo trânsito selvagem.
Na seção de ocorrências policias consta que era funileiro autônomo. É tudo o que sabemos, além de que morreu. Um ciclista qualquer, curvado sobre o guidão, riscando o trim, trim da campainha.
Na volta do almoço corria decerto para atender a um chamado, quando o caminhão, na ultrapassagem, matou-o quase de imediato. Josué ainda moço, não se foi sem deixar um recado, ao contrário dos velhos ciclistas exaustos de tanto pedalar.
O caminhão passou por cima do corpo e da bicicleta de Josué. Não morreu de pronto. Iniciou uma frase:
– Avi…se… Ma…ri…
E mais nada. A bicicleta e o corpo, um só Josué. Ao separarem cabeça torta e guidão retorcido, que fim o levou?
O caminhoneiro, após exame de dosagem alcoólica, liberado seguiu viagem. Josué, esse, conduzido ao necrotério, um dos braços arrastando no chão.
Para que cidade, a uma hora da tarde no relógio da catedral, tripulou o seu pássaro de roda sem aros? Já desviara antes de caminhões que lhe mordiam a nuca e, dobrando-se sobre o guidão, girava destemido os pedais. O vento na cara, por onde o suor escorria, quase ergueu voo na praça Tiradentes se um guarda na esquina não fecha o sinal.
Outra vez monta o seu cavalinho de arame e sai chispado para a morte, a uma da tarde em todos os relógios da praça Tiradentes. É a hora em que os caminhões almoçam ciclistas. Entre um para-choque com dez toneladas de carga e o magro peito de Josué, quem pode mais?
O baque fundiu o moço e o brinquedo de passeio em bicicleta cubista. Primeiro ela pousou num galho florido de ipê, depois na torre esquerda da catedral e, já pintada de ouro, se perde na próxima nuvem.
No reino dos ciclistas os caminhões são proibidos e Josué entrou sem perigo no céu, ainda que na contramão.
O sangue derramado no asfalto viajou nos pneus de carros em várias direções. Algumas gotas para o norte, outras para a cordilheira dos Andes, as mais preciosas para a rua da namorada: era sangue do coração de Josué.
Ele morreu como um bom ciclista: quase de imediato. Se um de nós cai, outro já decola a uma da tarde, o peito impávido contra a baioneta calada dos para-choques. Investe aos saltos, o coração pequeno de medo e nenhum pensa em usar colete de aço.
Josué, humilde e buliçoso pardal da cidade. Os passarões menosprezam os pobres pardaizinhos, que não têm penas coloridas nem cantam. Eco ao trim, trim da nossa campainha – ai, ai, socorro! – igual apelo é o seu pipio aflito.
Agora todos sabemos, Josué, da sua curta biografia. Precisou morrer para ser lembrado, ao menos por instante. Josué dos Santos, ciclista do sem fim azul e, ao que parece, funileiro autônomo.
Em cada esquina desta cidade a morte pede carona.
Amanhã qual de nós, ao lhe estender a mão, estará fazendo a sua última cortesia?
*Texto inédito que aparecerá no livro A Mão na Pena, a ser lançado pela editora Arte & Letra
*Publicado no jornal Gazeta do Povo
O nosso Vampiro continua com a mão firme na pena! Que beleza!