por Thea Tavares
A pequena Maria Julia, de nove anos, estudante da 5ª série de uma escola da rede privada de ensino, resolveu, num belo dia, fazer uma enquete com os colegas de turma. “Preconceito” era o tema discutido em sala de aula e que estava na pauta dos trabalhos escolares por aqueles dias, desde os esclarecimentos sobre a origem da palavra até os conteúdos veiculados na imprensa, que retratam a reincidência e constância de episódios, em notícias que evidenciam as graves consequências da naturalização dos padrões de preconceito e de discriminação.
Dedicada e introspectiva, a menina ficou matutando aquelas questões e logo encontrou um sentido bastante prático para suas inquietações e angústias, diante do conhecimento adquirido e investigado na profundidade dos questionamentos de uma criança inteligente e criativa. Resolveu apurar ainda mais e chegou para os colegas com a enquete: – Quem de vocês já sofreu algum tipo de preconceito? Daí, surgiram inúmeras situações. Uma relatou que foi vítima de bullying porque tem o cabelo encaracolado; Outra, por ser gordinha; Uma terceira, por ser negra e assim por diante. A maioria, a bem da verdade, reclamou que só queria jogar futebol e que os meninos não deixavam, visto que na opinião – ou autodefesa – deles, esse esporte é coisa exclusiva dos meninos. Ainda bem que jogadoras da nossa seleção, como Marta, Cristiane, Formiga, Bárbara, Tamires, Erika etc, não deram a menor pelota para conversinhas desse feitio na sua infância.
Mas um detalhe chamou a atenção da Maju: todos os colegas que responderam já terem sofrido preconceito, ou seja, 100% das vítimas, eram meninas! A constatação imediata a que ela chegou foi que isso se deve “pelo simples fato de serem meninas”! Quando fiquei sabendo dessa história, lembrei imediatamente da Lei do Feminicídio (sancionada em março de 2015), que qualifica como crimes hediondos os assassinatos de mulheres, envolvendo violência doméstica e familiar (no escopo de outra lei, a Maria da Penha, de agosto de 2006) e motivado por discriminações ou menosprezo da condição de ser mulher. Claro que essa é uma descrição resumida e rasa da complexidade e especificidade do tema, mas que ajuda na compreensão da associação traçada diante da sábia percepção da Maju.
A nossa sociedade patriarcal, machista e misógina em geral e corroída em sua estrutura, torce o nariz para a necessidade de se acentuar com rigor o caráter punitivo e pedagógico de responsabilizações dessa natureza, a fim de avançarmos em questões que ainda nos ancoram, digamos assim, na pré-história das relações humanas e sociais. Ou para estancarmos um mal que deixa feridas tão profundas. E este é exatamente o caso da violência contra as mulheres e de tantos outros crimes enraizados no ódio, nas intolerâncias e em discriminações. Nessa sociedade tão desigual, tais práticas ampliam ainda mais o fosso perverso do “sorteio” ou funil das oportunidades.
“Eu fico com a pureza da resposta das crianças”…
Nem me cabe aqui esmiuçar questões que demandariam anos mais de estudos e de dedicação, mas a constatação natural, pura e espontânea, extraída do método científico da pequena Maria Julia em sala de aula – com bom uso da observação, escuta, formulação de hipótese, pesquisa e conclusão – não deixa margem para que possamos nos dar ao luxo de fechar os olhos para tal realidade. Conseguirmos nos libertar dessa selvageria passa necessariamente pela humildade de questionarmos o mundo a nosso redor pelo olhar singelo, livre de indiferenças e pelo ânimo transformador de uma criança.
O que nos devolve também a uma responsabilidade bem particular, mas muito auspiciosa: o que estamos fazendo, na medida do nosso alcance, para prevenirmos, enfrentarmos e banirmos essas violências das nossas relações sociais e da convivência íntima ou familiar? O que estamos ensinando às nossas crianças – inclusive à criança interior que nos habita – sobre a existência de diversas formas de violência, motivadas pelos preconceitos e que violam, amputam direitos de outras pessoas, povos e comunidades inteiras? Eis a questão. Obrigada Maria Julia! Hoje, a nossa educadora é você. Nossa consciência e voz intuitiva, que nos estimula à mudança de atitude. Tarefa diária para levarmos para casa e devolvermos ao mundo com diploma de avanço civilizatório e certificado de boa nota na prova do respeito.
Lá em Santa Isabel do Ivai, tem um frentista de posto de combustíveis cujo apelido é Negão. Bitelão, preto, afável, solícito, simpático. Só qualidades. Pintou essa onda de políticamente correto, de bulingue, o caraio, numa viagem prá lá fui abastecer e pedi: “Enche o tanque, Valdomiro!” Ao que ele me respondeu quase em lágrimas: “Até você, Parreirinha, gostava tanto quando me chamavam de Negão…..”
Kkkkkk, Parreiras! A diferença está na ofensa, ou seja, na comunicação estabelecida: a intenção de quem diz e a reação na psiquê de quem recebe. O caso do “Valdomiro” é “traço”, não passa da base no gráfico das estatísticas dessa natureza… Infelizmente, na esmagadora maioria das vezes a intenção é de ofender e o impacto em quem recebe (e entende como ofensa) também é doloroso e causa transtornos. Respeito é sempre bom!