por Nilson Monteiro
Ai de um dos seus 26 netos que ousasse jogar um pedaço de pão fora. Ele franzia suas sobrancelhas cerradas que cobriam olhos miúdos e pedaço de sua testa, chamava o autor do desprezo e lhe passava um sermão em frente aos primos e, se estivessem presentes, seus filhos e nossos pais.
Meu avô espanhol tinha um respeito profundo pelo pão (pronunciava “pan”), que transmitiu, a cada gesto e refeição, aos filhos e netos.
Para ele, quem sabe, o pão representasse, além de saciar a fome, a continuação da sua vida naqueles seres nascidos de suas raízes e a sua própria imortalidade. Lembrava também, claro, junto ao garbanzo, a única comida que os imigrantes espanhóis tinham direito durante sua saga na imigração para a América do Sul. Um gosto de vida.
Meu pai, nascido, como eu, em Presidente Bernardes (SP), nunca conseguiu pronunciar pão, chamando o alimento no mesmo dialeto de seu pai.
O pão, sempre presente na mesa de espanhóis, assim como de outros europeus, é sagrado, como o foi para Jesus, ao multiplica-lo junto aos peixes, para seus seguidores, e como é na missa para os católicos, durante a Consagração da hóstia – feito o corpo de Cristo, transforma-se no alimento da alma.
A doçura da paz e do cultivo do trigo e das oliveiras, mas também as guerras, a miséria e a fome vividas em diversos momentos por meus avós e vários de seus parentes e conhecidos, em Garvin de La Jara, em Cáceres, na Extremadura, explicam, também religiosamente, o respeito por um pedaço de pão, tivesse o tamanho, cheiro e o gosto que tivesse. A essência estava no pão para além de saciar a fome. Era o espírito e o corpo da sobrevivência não só em seu chão, mas aonde viessem a plantar sua vida em uma nova terra.
Vi um filme no qual o patriarca de uma família de judeus fugitivos de nazistas, reparte uma bala doce, dando um pedacinho a cada um dos quatro filhos, chupando apenas e tão somente sua saliva de tristeza mas de esperança. Repetia o milagre da multiplicação presente na fé cristã.
Meu avô Militão Monteiro talvez repartisse e respeitasse o pão, em ato comum mas quase litúrgico, com o mesmo gesto daquele pai.
(NM)